Vamos cortar os gastos públicos?

O empenho da área econômica do governo em promover a ferro e fogo a política de austeridade fiscal surpreende a todos e todas que não estão muito habituados a acompanhar com certo detalhe e proximidade a evolução do debate e das decisões do Ministério da Fazenda a esse respeito. Na verdade, a postura de Fernando Haddad não tem deixado quase nenhuma diferença com relação aos representantes do financismo quando se trata de recomendações para medidas de orientação da política fiscal.

Essa tendência em atender aos desejos do sistema financeiro começou a tomar forma já no período que transcorreu entre a oficialização da vitória de Lula em outubro do ano passado e a posse em 1º de janeiro. Naquele momento foi gestada a chamada PEC da Transição, que deveria ter tido por objetivo apenas assegurar recursos orçamentários para que o novo governo pudesse começar o exercício de 2023 com dinheiro suficiente para cumprir com algumas de suas principais promessas de campanha. Mas aquele teria sido também o instrumento adequado para estabelecer a revogação da EC 95, dispositivo que abrigava o famigerado teto de gastos. A referida PEC foi promulgada sob a forma da Emenda Constitucional 126/22.

Mas o problema é que Haddad incluiu na medida uma condicionante inesperada para a eliminação de tal instrumento extremo de austeridade. Ao invés de simplesmente revogá-lo, como havia sido prometido por Lula durante a campanha, a política do bom mocismo estabeleceu uma novidade preocupante. A proposta estabelecia que o teto só seria extinto a partir do momento em que o governo eleito encaminhasse ao Congresso Nacional, até o mês de agosto, uma lei complementar que tratasse de um “novo arcabouço fiscal”. A sequência é conhecida de todo mundo. O titular da Fazenda fechou-se em copas, atendendo apenas às demandas e sugestões do presidente do Banco Central e dos demais dirigentes do capital financeiro privado. O prazo de agosto foi encurtado para evitar maiores discussões públicas e críticas ao modelo que foi sendo construído. O governo encaminhou a proposta ao legislativo ainda em abril.

A austeridade segue a todo vapor

A sanção da Lei Complementar nº 200/23 ocorreu em 31 de agosto e o novo arcabouço fiscal passou a substituir as regras muito mais draconianas do teto de gastos. Porém, o artifício retórico de comparar o novo modelo com a desgraceira representada pelo teto de Temer & Meirelles não resiste ao menor debate a respeito do conteúdo da proposta da neo-austeridade. Não é por outra razão que o sistema proposto por Haddad foi logo chamado “carinhosamente” de calabouço fiscal. Afinal, ele mantém as mesmas ideias equivocadas de mirar na busca de superávit primário, de restringir o crescimento de despesas orçamentárias em relação ao crescimento das receitas, de proibir a capitalização de empresas estatais e de não incluir as despesas financeiras no cálculo dos gastos a serem limitados. Enfim, pode-se dizer que se trata de um teto de novo tipo.

Passada a fase de aprovação dos dispositivos da austeridade, agora vem a etapa da implementação de novos ajustes. O alerta que fazíamos desde o início a respeito da compressão que seria provocada pela existência de pisos constitucionais para saúde educação ganha agora a centralidade no debate. E representantes da área econômica já falam abertamente que o governo deve enviar uma PEC para eliminar a vinculação dos mínimos de ambas as áreas sociais à receita tributária da União. Uma loucura! Imaginemos um governo progressista, com uma proposta desenvolvimentista para o País, fazendo o trabalho sujo que nenhum outro governo de direita ousou ou teve força para implementar. Pior do que isso, foi o Executivo ter enviado uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo autorização à corte para o descumprimento de determinação constitucional. Ao invés de limitar as atribuições do Tribunal às suas funções de controle, o próprio governo busca, de forma escancaradamente oportunista, uma via para reforçar o austericídio presente na cabeça dos formuladores da área econômica.

A memória curta parece não trazer à tona o doloroso processo de impedimento de Dilma Rousseff, quando esse mesmo TCU criou jurisprudência própria e encomendada para que as tais “pedaladas fiscais” fossem utilizadas de forma ilegal para justificar o afastamento da Chefe do Executivo. A partir do momento que o governo solicita a um órgão de controle autorização para não cumprir a Constituição, abre-se uma avenida de ilegitimidade para decisões posteriores ao arrepio dos princípios democráticos e republicanos.

Cortar nas despesas juros e não em gastos sociais

Mas se o governo insiste mesmo em cortar gastos para atingir o fatídico zeramento do déficit fiscal, talvez fosse o caso de olhar com mais honestidade e transparência para o estado atual das despesas da União. A esse título, vale registrar as informações trazidas pelo Banco Central em sua recente Nota sobre Estatísticas Fiscais. Ali se percebe que o governo federal gastou, apenas durante o mês de agosto passado, o equivalente a R$ 84 bilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Com isso, cai por terra a máscara falaciosa a respeito da necessidade de cortar despesas nas áreas sociais. Se somarmos os valores dos últimos 12 meses, a conta total dos dispêndios com juros sobe a R$ 690 bilhões.

Mas como a malandragem da metodologia das últimas décadas foca apenas nas despesas “primárias”, os gastos financeiros (não primários) ficam de fora dos cálculos. Ora, que os representantes do financismo pensem e ajam de tal forma é até compreensível. Mas não cabe a um governo eleito com um projeto de retomar o desenvolvimento econômico e social do País e de promover a redução de desigualdades de toda ordem incorporar esse tipo de análise distorcida e visada da realidade econômica.

Se vamos cortar mesmo gastos, por que não começar pelas despesas que são inquestionavelmente as mais parasitas do Orçamento e de menor impacto positivo sobre a recuperação da atividade da economia de forma geral? Mas não! A equipe econômica insiste em responsabilizar saúde, educação, previdência, assistência social, saneamento, investimento, salários de servidores e similares como sendo os “vilões” da busca desenfreada de um mítico equilíbrio nas contas públicas no curto prazo a qualquer custo.

O próprio presidente Lula já estabeleceu que, em seu governo, a responsabilidade fiscal não pode ser desassociada da responsabilidade social. Além disso, ele definiu por diversas ocasiões que as rubricas em saúde e em educação, por exemplo, devem ser consideradas como investimento e não como mero gasto corrente. Tais abordagens mudam completamente a forma de se avaliar e solucionar as equações da área fiscal. Apenas a título de comparação, o total de despesas previstas para saúde para o presente ano é de R$ 183 bi e o da educação é de R$ 147 bi. Ou seja, os dois somados não atingem nem a metade do valor dos gastos com juros da dívida.

A intenção é mesmo essa de promover o corte de gastos orçamentários? Então que a tesoura comece pelas despesas financeiras. Como os adeptos do austericídio gostam de dizer, há muita gordurinha para queimar nas rubricas associadas ao pagamento de juros da dívida pública.

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