“O elogio da sombra” é um ensaio clássico surpreendente, apontando diferenças no olhar Ocidente/Oriente.
“Já viu alguma vez, leitor, ‘a cor da escuridão à luz de uma chama’?”
O filme Perfect Days, de Wim Wenders, resultou na incursão pelas referências, seus intertextos. E nisso, o encontro com um pequeno livro, maravilha: O elogio da sombra, ensaio clássico surpreendente, apontando diferenças no olhar Ocidente/Oriente, escrito em 1933. Junichiro Tanisaki, o autor, foi um dos grandes escritores japoneses do século XX.
Em O elogio da sombra, ele trabalha sobre a estética, apontando o contraste: para os ocidentais, a beleza se encontra muito ligada à luz. Pensamos neste escrito em seu contexto da década de trinta, e logo o associamos às grandes cidades americanas ou europeias da época, Nova York ou Paris, ambas de certa forma cidades-luz, espetáculos (ainda que com o crack da bolsa-1929, eram tempos complicados).
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Para os orientais, ao contrário, tudo gira em torno do mistério da sombra, apontava. Não tanto do brilho dos objetos (lembremos a arte fashion, fascinante, mas também bastante criticada de Jeff Koons, ícone polêmico do contemporâneo), mas do jogo entre claro e escuro que cria consistências mais ou menos fugazes pelas posições, reflexos e movimentos – por vezes um relance nas passagens.
Criam-se densidades. Ambientes dramáticos. Espaços de estranheza. Que, se fossem colocados à exposição luminosa, sem os recantos e as subtrações, deixariam escoar a beleza produzida.
Isto foi o que siderou Lacan quando pensava a questão da criação, do surgimento do algo novo, da invenção. Leitor de Tanisaki, reconhecemos onde este ressalta em quê seus antepassados se mostraram geniais: “a esse universo de sombras, criaram um espaço novo, rigorosamente vazio.” Deste vazio se produzindo, então, uma qualidade estética para além de qualquer ornamento ou decoração.
A arquitetura, os materiais, a beleza das lacas e das cerâmicas, o feminino, e a intervenção do tempo – um pote, um vaso, quanto mais mostrando a marca das mãos em seu uso, mais valioso… A ancestralidade que se encontra em uma presença invisível, as cores neutras e o registro do gasto nos objetos, pelo uso ou pelo tempo, ou mesmo pela combinatória dos dois.
Um achado a formulação de Tanisaki sobre o inaugural desta estética. Se, em uma casa japonesa, as beiras do telhado se projetam tanto, é por causa do clima, ele diz. A falta de elementos como cimento ou ladrilhos fazia a necessidade de proteção das paredes desta forma, o que resultava em casas escuras. Sua hipótese é a de que os japoneses talvez preferissem também uma casa mais iluminada, mas “se viram obrigados a fazer da necessidade, virtude” (O que diria Tanisaki da casa de transparência de Sou Fujimoto, com sua concepção inspirada em casa na árvore, metal e vidro…).
Mas o ponto aqui é o de que seus antepassados, obrigados a morar em casas escuras, um dia descobriram um traço de beleza em meio à sombra. Inaugura-se então o trato da sombra a constituir estética.
E vem o interessante para nós: a criação, a beleza marcada como um jogo sobre a opacidade ou alguma luminosidade sobre a sombra, onde não é preciso nenhum acessório. É um jogo posicional, podemos dizer. Como o que se pode dizer também de nosso trânsito enquanto sujeitos, puxando aqui a relação para nosso campo.
O ocidental frente ao ambiente de uma casa assim fica surpreso e acha que está diante de paredes simples, cinzas, sem nenhum ornamento, produzindo um sentimento de coisa desnuda, aponta: são os que não entendem o enigma das sombras. Chega a ser engraçada a sua impressão sobre uma casa ocidental: nas construções recentes de estilo ocidental resplandecem umas luzes brutais, tetos baixos, e essas luzes como “bolas de fogo que giram em cima do crânio”.
Hoje talvez isso não seja tão evidente, que para um ocidental aquela casa japonesa resulte como que incompreensível, mas pensemos que já nos atravessa uma estética composta por muitos atravessamentos culturais, e que há anos o sushi, originalmente japonês, reina, de certa forma, em nossos gostos. Por sinal, o livro termina com uma receita detalhada do sushi montanhês que passou degustando por uma temporada de viagem, e que achou sublime (!). Mas tudo isso, para nós, são acessos de poucas décadas.
A propósito, lembro até hoje do mistério para mim quando meus pais chegaram do jantar, era o primeiro restaurante de inspiração oriental em Porto Alegre, acho que chinês, e me trouxeram os guardanapos com bichos estranhos e trabalhados, os hashis, pratinhos de shoyu tudo em vermelho preto e dourado. Eu devia ter uns cinco anos e aquilo era de outro mundo…
A série Shogun, número um de todas as indicações para o Emmy de 2024, faz uma excelente reconstrução do Japão medieval, nos aparece linda. Mas sim, podemos encontrar algo de razão no ocidental que olha, pela palavra de Tanisaki, até hoje. É uma casa perturbadora, em sua disposição. E possivelmente sempre será, comporta como que certa aura benjaminiana: proximidade na distância, algo que está em alteridade para nós.
Luz indireta e difusa, é o elemento principal, segue Tanisaki. Cor crepuscular das paredes, e ele pergunta ao leitor se nunca teve essa impressão de ver uma claridade que flutua, uma densidade particular… As superfícies de pó de ouro polvilhando as paredes, ou os biombos dourados colocados em lugares onde o sol nunca iria alcançar permitem que quando se atravesse um corredor, voltando-se a olhar, que se encontre um reflexo como se fosse uma linha do horizonte crepuscular.
Espessura do silêncio. Como uma bruma impenetrável, como ver a obscuridade que se materializa, e, por fim, a associação com o mundo dos sonhos. “Reflexos tão irreais como um sonho.” Bruma palpitante que não raro favorecia alucinações a seus habitantes.
O texto vai nos envolvendo, adquirindo a densidade de uma poesia, de uma tela sendo pintada, como quando ele destaca com calma a potência de um bowl preto de laca preparado para receber o branco cintilante do arroz, e da delícia desta combinatória (quase podemos ver o brilho). Os contrastes vão ao detalhe, o embate entre laca negra contra os talheres ocidentais de metal, polidos ao extremo, com o brilho frio do metal do aço.
Ou momentos belíssimos como o do trecho de estranheza radical onde fala das mulheres. Pensem no sorriso de uma mulher de outros tempos, ele diz, visto pela luz de uma lanterna japonesa quando faz centelhar uns dentes lacados de negro, entrevistos pelos lábios de um azul irreal de fogo-fátuo (seu famoso lápis de lábios azul-verdoso com reflexos nacarados). Criação de outro mundo, irreal, limiar, da família do fantasmal, podemos dizer.
Sua posição não é nostálgica. É a escolha de nos oferecer seu olhar por tantas pequenas experiências próprias (e, claro, tributária de seu tempo em muitas abordagens, como o lugar das mulheres naquele quadro discursivo ou mesmo a distribuição Oriente-Ocidente). Mas parte de seu gosto e sensibilidade, de um episódio ou outro que lhe aconteceu, corriqueiro, cotidiano; o efeito sobre si, o que isso lhe propiciou pensar.
Cruzando as culturas, novamente, poderíamos dizer que dialoga com Montaigne na forma do narrar um pequeno recorte da sua experiência, que se abre para o ensaio e que termina por nos alcançar e incluir em nosso tempo. Chama, ao modo da estética e da literatura, para algo que nos importa hoje saber preservar: o inestimável mundo das nuances. (Publicado no Sul 21, 06/08/2024)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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