A banda passou. A bateria acabou. O trio parou. Fez-se um silêncio notável. Aos poucos, tudo foi voltando ao ritmo normal, sem cadência, marcação ou harmonia. O enredo da vida foi se impondo novamente, mais confuso ainda que os enredos das escolas de samba. Momos devolveram as chaves das cidades a políticos de visão paroquial. A bagunça do carnaval terminou para o caos da vida retomar seu reino.

Nas ruas ainda há vestígios. Adereços abandonados em meio a pequenos montes de lixo em calçadas regadas a urina e cerveja. Por alguns dias, as ruas do vai e vem dos comércios e de gente séria fazendo as coisas engravatas de gente séria cheiram parecido com as ruas das periferias sem esgoto e dignidade. Um ou outro folião abatido por alguma química e exageros perambula tortuoso em busca de onde mora. Faz par com os que moram nas ruas e vivem abatidos pela fome, indiferença e a brutalidade das cidades.

Somem das ruas os super heróis de histórias em quadrinhos estrangeiras, as fantasias irônicas improvisadas, os travestimentos em que homens se vestem de mulher sem medo de apanhar de machistas, nazistas, babacas ou gays reprimidos. As fantasias do dia a dia, de Ci I Ôu, homem de bem, trabalhador honesto, doutor sem doutorado, voltam a reinar no baile da vida. Sai a verdade cômica das fantasias carnavalescas e voltam as máscaras e as dissimulações tediosas e sem graça de uma gente canalha no privado e de aparente puritanismo no público.

As mulheres sensuais e sexuais voltam às suas condições de sensualidade e sexualidade contidas. Voltam a serem do lar, de alguém, dos outros, de qualquer coisa menos delas mesmas. Ou voltam à condição guerreira de lutarem para serem mulheres. De não serem tomadas apenas como objeto do prazer alheio. De transformarem a condição feminina de uma condição social reprimida para uma condição apenas humana de existência.

As redes sociais, lugar de fantasia o ano inteiro, ainda ecoam imagens e histórias dos dias de folia. Ainda não voltaram inteiramente aos seus trabalhos de autopromoção, moralismos, cancelamentos, distorções da realidade, comédias tristes ou raivosas, tragédias privadas e mentiras cretinas. Postagens ainda sambam, ecoando os ares dos dias festejados.

Algumas consciências pesam. Alguns órgãos vitais cobram o preço dos dias desregrados. Consequência da contabilidade dos exageros. Coisa de quem se vê, por alguns dias, livre para ser quem realmente é, mas que sem sabedoria sobre si mesmo ou costume com a liberdade, torna-se um terceiro. Nem si mesmo, nem sua fantasia quotidiana. Uma terceira fantasia. De folião em êxtase. De alegria forçada no deslumbre de estar perdido de si mesmo. No encantamento de testemunhar e participar do caos carnavalesco que substitui o caos asfixiante do quotidiano. Exageros de quem, sem saber viver, busca afoito os sabores da vida.

As alegorias e os gritos de carnaval, ordens de folia e alegria, são substituídos pelas alegorias performáticas de políticos patéticos, discursos de ódio, dissimulações, analistas de todos os tipos de coisas que uma análise ajuda a dar dinheiro a alguém fazem suas falas seguras e cheias de ares de certeza. Na economia, mostram com desenvoltura o quanto o crescimento econômico só é bom quando há concentração de renda e que gente empregada é ruim porque causa inflação. No direito, explicam o que a lei diz e o que a lei não diz, logo depois de outro especialista que diz outras coisas sobre os dizeres das leis. Na ciência, cientistas falam do trabalho de sua vida para gente que não entende e não liga para isso.

O Carnaval terminou. Foi-se para voltar só no ano que vem. Para que por uns poucos dias, haja o suspiro de alguma verdade e liberdade para tantas vidas reprimidas em ilusões.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli 
Clique aqui para ler artigos do autor.