Ninguém sabe dizer quando e nem porque Jairo começou a cavar. Também, isso já não importava mais. No começo, era só um poço, pensaram. Mas estranhavam porque poço é coisa que se cavuca para retirar alguma coisa valiosa do fundo, mas só o que Jairo tirava de lá era terra mesmo.

Depois de um tempo, as paredes acabaram cedendo e levaram as bordas para dentro dele. Parecia o fim e, de certa maneira, foi mesmo porque o poço virou buraco. Deixou de ser um vazio fundo e estreito e tornou-se raso e largo.

E assim foi. Dia após dia. Ano após ano. Jairo, com picaretadas, cavando o fundo. E o buraco se alargando. Como uma boca sedenta e suja, o fundo do poço devorava a superfície enquanto afundava e crescia. Ficou tão grande que virou notícia.

Curiosamente, muita gente não ligava para a superfície. Apesar de ser onde viviam, por algum motivo, dela se desgostaram. Diziam ser contra tudo isso que estava ali em cima da terra. Queriam tudo diferente. Queriam o novo e de novidade por ali só havia o fundo do poço do Jairo. Não demorou para que acreditassem que só mudaria tudo quando toda superfície fosse tragada. Pularam no poço.

Com mais gente picaretando, o buraco começou a crescer mais rápido. A destruição era preocupante, mas as pessoas do lado de fora do buraco não ligavam muito. Uns acreditavam que a superfície era sólida o bastante para, cedo ou tarde, impedir que tudo afundasse. Outros, riam das coisas grotescas ditas lá do fundo do poço como se tudo aquilo fosse inocente como uma piada de salão.

E aos poucos o solo e o que nele havia foi sendo tragado e nada surgia no lugar. Ficava só o vazio e o fedor úmido do fundo do poço. Cresceu tanto que dali em pouco tempo, as pessoas passaram a imaginar seu mundo dividido em dois espaços, o fundo do poço e o vazio. Como se a superfície, apesar de ainda pisarem nela, já não mais existisse.

Aquele modo de pensar transformou as pessoas. A falta da superfície gerou, aos poucos, um vazio por dentro de cada um. Houve quem fugisse para onde não houvesse gente levando tudo para o fundo do poço. Exilados da melancolia. Também teve os que se jogaram na lama do fundo só pela ilusão de encontrar nela a firmeza perdida. E, claro, havia também os que, movidos pela tristeza da superfície ameaçada, lutavam por ela.

Atônitos, estes últimos se perguntavam quando Jairo iria parar. Qual seria o verdadeiro fundo do poço? Mas nem a ruína financeira, nem mortes, nem a sujeira da lama podre, nada, absolutamente nada parava Jairo. Para ele, o fundo do poço não era um lugar onde se chegar, mas de se estar. Ele sempre esteve lá, picaretando. Foi afundando o fundo do poço que conquistou companheiros e transformou a superfície na sua lama, por que pararia?

Fora do fundo, os que sofriam e os que lutavam se entendiam pela tristeza, mas não pelas ideias. Agiam como se tampar o buraco não fosse um problema. Perdidos entre suas ambições e desconfianças, não se davam conta de que o fundo do poço devorava seus corações e mentes antes mesmo de tragar as superfícies para seu intestino enlameado.

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