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Contar causos é um dos melhores passatempos da humanidade. Mas não se confunda caso com causo. Este é a versão humorística daquele. Tampouco confunda causo com piada, que é toda inventada. Já o causo, ainda que exagerado e distorcido, é um caso melhor contado. Um dos grandes contadores de causos foi o jornalista (e político) gaúcho Glênio Peres. Aguerrido, boa praça, gozador. O nome desta coluna, Grifo Causídico (de contador de causos, não de advogado) é inspirado em um dos causos do Glênio:

O JURISTA

Um conhecido vereador, agiota e advogado, gostava de dar chave de galão em discussões dizendo-se jurista. O Glênio um dia o cortou: – Fulano, não confunda jurista com aquele de vive de juros.

MARINHA

Meio de tarde de um verão pavoroso, Glênio avisou aos assessores: – Vou sair. Se alguém me procurar, digam que fui a uma reunião na Marinha. E partiu para o bar Naval.

COQUETEL

O chefe da Casa Civil no governo de Alceu Collares, Mathias Nagelstein, portava olheiras profundas. Gozador, ele próprio contava esta: – Eu estava em uma roda de conversa em um coquetel. Cada vez que passava um garçom eu pegava um copo de água. Alguém na roda, que me conhecia pouco, perguntou: – A farra foi longa ontem? – Não é isso, eu não bebo. – Nunca? – Faz tempo. – Mas que desperdício dessa cara de borracho!

TRINTRIM

Em abril de 1977, num golpe dentro do golpe, o ditador Ernesto Geisel emparedou o ministro do Exército, de um lado, e fechou o Congresso Nacional, de outro. Naqueles dias perturbadores, alguém ligou, por engano, para a Livraria Lima: – Alô, é da Segurança? Respondeu o Mário Lima: – Não. Aqui é da insegurança.

GALÕES

Durante a ditadura civil-militar (1964-85), encontraram-se num elevador o deputado-coronel Pedro Américo Leal e seu colega Celestino Goulart, reconhecido articulador político. Ambos eram da Arena, o partido da ditadura. – Celestino, com a minha inteligência e o teu talento, eu estaria longe! – Pois, Pedro, com o meu talento e a tua farda eu estaria ainda muito mais…

ÓRFÃO

O grande jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano contou este causo no programa de esportes de que participava em uma emissora de rádio em Montevidéu: Antes do começo de um jogo de futebol, fizeram respeitoso minuto de silêncio pela morte da mãe do árbitro. Começou a partida e, ao primeiro erro do juiz, a torcida cantou, em coro: – Ór-fão-da-pu-ta, ór-fão-da- -pu-ta, ór-fão-da-pu-ta!

FAMA

José Antônio Flores da Cunha, “general Flores”, foi o todo poderoso governador do Rio Grande do Sul de 1930 a 37, primeiro como interventor nomeado pelo ditador Getúlio Vargas, depois eleito. Junto com Osvaldo Aranha, liderou o ataque ao quartel general da região sul, dando início à chamada Revolução de 30.

Grande caudilho, era também o rei da noite. Dizia:

– Fama de valente, rico e mulherengo, ainda que exagerada, não se desmente jamais.

PUXA SACO

Numa roda de poker, Flores recebeu de mão um four de damas. Às suas costas, um assessor esfregou as mãos.  Impassível, o governador dispensou o four e pediu novas cartas. O puxa saco se surpreendeu: – Oh!… O general se voltou pra trás, deliciado: – Sofre, peru filho de uma puta!

JOGADOR

Um admirador conheceu Flores da Cunha em seus últimos anos, com um nível econômico humilde, apesar de ter desfrutado de grande poder político. Ele explicou: – Minha vida foi cheia de cavalos lentos e mulheres rápidas.

ATENTO

Estava dando minha aula no Jornalismo. Lá pelas tantas, pra enfatizar algo, eu digo: – Isso só um ignorante não percebe. Do fundo da sala o jovem Gabriel Moogen grita:  Tô entendendo tudo, professor!

PESCARIA

Conheço muitos causos de pescaria, mas nenhum como a pescaria de rebenque do pai do Olívio Dutra, ex-governador do Rio Grande do Sul. No interior da Bossoroca, seu Cassiano saía pra pescar o almoço, acompanhado dos filhos. Os distribuía metade numa margem, metade na outra e se postava sobre as pedras no centro do riacho, munido de um rebenque de couro largo. Quando o cardune pulava, ele distribuía rebencaços à direita e à esquerda, jogando peixes numa e noutra margem, onde a piazada os catava rapidamente.

 MANCADA

Em 1968, o grande repórter José Hamilton Ribeiro foi enviado pela revista Realidade ao Vietnam, cobrir a guerra em que um pequeno povo derrotou o exército norteamericano. Lá, uma mina destruiu uma perna do Zé. Décadas depois, ele foi convidado para uma palestra em uma das faculdades de Jornalismo de São Paulo. Apiedado, um jovem perguntou se não era difícil ser repórter com uma perna só. – Sem uma perna, às vezes complica. Mas sem ideias é muito difícil. (Parcialmente publicado no Grifo No. 16)

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Ilustração: Edgar Vasques
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