Como é a relação do chefe com o servidor público

Chove há tempos. Gladson não gosta de chuva e nem de guarda-chuva. Também não gosta de chegar atrasado. Mal saltou do Uber, afundou os sapatos de couro barato numa grande poça quente. Pensou num palavrão. Acabou só rosnando. Cruzou o saguão com os sapatos borbulhantes. Subiu com cara amarrada no elevador lotado de gente desconhecida. Desabou sobre a cadeira e ligou o computador. Ainda faltavam quatro minutos para o começo do expediente.

Dobrou as mangas para não gotejarem sobre os papeis que engordavam processos importantes. Daquela importância que só quem trabalha lá acredita que tem. Os que dependem de alguma decisão, veem só o atravanco enlouquecido da irritante burocracia. Lá no íntimo de sua alma, Gladson se sente desimportante. Por isto exagera, sem se dar conta, na importância dos papéis com palavrório chato e carimbos imperfeitos.

O chefe entrou na sala sem dar bom dia. Estava seco e seus sapatos de couro brilhante deslizavam no chão limpo como sapatilhas de bailarina em palco encerado. Com ar pedante, apenas apontou uma página do processo que trouxera consigo. Gladson manuseou com cuidado o papelório para não molhá-lo.

O chefe de Gladson não sabe o que ele sabe. Não estudou o que ele estudou e nem tem a experiência que ele tem. Está lá para mandar porque quem manda em quem manda gosta dele. E o objetivo de quem manda em quem manda é ter alguém que vai lhe obedecer, não importando se por gratidão, ambição ou hábito. E o objetivo de quem manda é obedecer para continuar mandando. Gente que obedece à lei mais do que às gentes que mandam é um problema.

Por hábito de quem procura erros, pensou que tivesse cometido algum. Como não encontrou, explicou para o chefe o que escreveu. Ele já havia entendido. E sabia que não havia erro. Mas queria um jeito. Porque o chefe do chefe quer um jeito. E o deputado Fulano pediu. E o senador Beltrano tem interesse. E o presidente falou disso na live.

Sem saber o que fazer, Galdson nada fez. Sem saber o que mais dizer, o chefe nada disse. Saiu pisando duro, maltratando os sapatos secos. A chuva aumentava e já se falava em enchentes e desabrigados.

No dia seguinte, chovia ainda mais. Gladson chegou novamente molhado. Mas não havia mais mesa e nem papéis para evitar molhar. Foi transferido para longe dali e já tinha outro no seu lugar. Outro que faz o que o chefe manda porque quer ser promovido. Ou nomeado por algum chefe para fazer algo que lhe permita ser chefe.

Na água que corria ligeira e agitada sobre o asfalto como um rio caudaloso, viu um barquinho de papel ultrapassar o carro em que estava. Dentro, o motorista olhava com cara feia pelo retrovisor pensando no banco molhado. Em casa, o chão estava molhado, as paredes escureciam de infiltrações e as roupas limpas mofavam no armário.

O estacionamento da nova repartição o obrigava a andar e molhar-se ainda mais. Agora, não tem mais papéis onde gotejar, só uma tela para ver e fazer de conta que faz algo enquanto não faz nada. Um vazio que dificulta esconder a sensação de desimportância. O novo chefe passa as horas criando, postando e comentando coisas na internet. Bajula o chefe e ataca quem critica. Não é o que deveria fazer, mas por não fazer o que deveria é muito bem visto pelo chefe do chefe do chefe.

Melancólico, Gladson passa os dias olhando pela janela, à espera de um dia de sol.

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Ilustração: Mihai Cauli 

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