Crédito: Ricardo Stuckert

No mês passado, o ministro de Defesa do governo de extrema direita, general Braga Netto, pressionou, através de um importante interlocutor político, o presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lyra, condicionando a realização das próximas eleições de 2022 ao regresso do voto impresso e auditável. No Brasil, a urna eletrônica encontra-se operando desde 1996. Braga Netto teria advertido “a quem interessasse” que não haveria eleições em 2022 caso não se instaurar o sistema do voto impresso e auditável.

Agora o ministro nega ter feito a ameaça, depois que os diversos representantes dos outros poderes do Estado denunciaram a manobra de teor claramente golpista. O que revela este episódio – além de evidenciar a essência conspiradora de muitos membros das Forças Armadas -, é o ambiente de desespero na esfera palaciana. Com o nível de desaprovação aumentando constantemente, o ex-capitão está utilizando todos os recursos e subterfúgios possíveis para evitar a consumação do processo de impeachment e conseguir chegar às eleições futuras com alguma chance de vencer.

Com efeito, as últimas enquetes de intenção de voto revelam que o ex-presidente Lula poderia vencer facilmente no segundo turno das eleições do próximo ano. Segundo um estudo recente realizado pelo Instituto Datafolha, numa disputa entre Lula e Bolsonaro o primeiro obteria 58% das preferências dos votantes sobre 31% de Bolsonaro. Logo que foram divulgados esses resultados, o mandatário começou uma campanha agressiva para tentar mudar o atual cenário, apelando inclusive ao atentado que sofreu há quase três anos.

Também está recorrendo à clássica manobra de viajar pelo país inaugurando obras inconclusas para se projetar e se promover como um realizador de obras em benefício da nação.

No entanto, Bolsonaro não somente continua perdendo o apoio da população, mas também de significativos setores da imprensa, do empresariado e do setor político. Para recuperar o apoio do centrão (na realidade um conglomerado de partidos de direita) foi nomeado como chefe da Casa Civil um representante desse grupo. Se este agregado de partidos vai continuar dando sustentação a Bolsonaro é uma questão que ainda está por constatar-se. Expressão máxima do fisiologismo político (“dar para receber’), o centrão é um ente gelatinoso que pode mudar de orientação segundo os ventos que sopram. Seu propósito sempre foi obter benefícios do governo de turno, seja este de direita, centro ou esquerda. Assim tem sido desde os tempos da redemocratização, em 1985, com José Sarney, passando por Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff.

A crise econômica e o desemprego

Com relação ao empresariado e o setor financeiro, o governo tem tratado de responder às suas aspirações literalmente congelando o salário mínimo e propondo uma reforma tributária que alivia a carga impositiva das grandes empresas. A crise do desemprego já alcança quase 15% da população economicamente ativa, o que representa 14,8 milhões de pessoas sem trabalho e 33,3 milhões em condições de subemprego.

Esta situação implica num enorme desgaste para o governo que, apostando na imunização de rebanho, atrasou de forma irracional o processo de vacinação da população e, consequentemente, comprometeu a retomada da atividade econômica. Apesar de os indicadores da economia terem mostrado alguns sinais positivos, o emprego não tem reagido na mesma medida. Pelo contrário, continua piorando a níveis que não se observavam faz muitos anos.

De outra parte, a inflação segue em espiral ascendente, abalando o poder aquisitivo das famílias de desempregados e também dos trabalhadores formais. Muitas destas famílias precisam recorrer à ajuda de organizações filantrópicas e sociais para conseguir sustentar a alimentação diária.

E, quiçá o pior, as expectativas de investimento externo, que já eram escassas, sofrem uma piora, dado o isolamento internacional crescente do governo Bolsonaro tanto pelo alinhamento unilateral aos EUA combinado com o abandono do multilateralismo diplomático, como também pela secundarização dos laços econômicos e comerciais com a América Latina e com o eixo Sul-Sul, incrementadas desde o processo de redemocratização do país.

O isolamento internacional é acentuado pela desestruturação das políticas ambientais e indigenistas, abrindo um cenário pavoroso de ataque ao meio ambiente e aos povos originários e seu rico legado de aportes culturais e saberes. São fatos que têm suscitado denúncias de ONG´s, de líderes religiosos e de diversas entidades de Direitos Humanos junto a instâncias e à jurisdição internacional, incluindo o Tribunal Penal Internacional. É um conjunto de fatores que tornaram o Brasil um pária internacional, completamente marginalizado dos mais relevantes debates e iniciativas globais.

Enfim, o governo Bolsonaro cada vez mais assume uma feição autocrática, preso a uma retórica de guerra cultural, de apelos obcecados a um sistema de crenças fundamentalistas odiosos, incapaz de entabular uma disputa de ideias e de construção hegemônica frente à diversidade pluralista da sociedade civil brasileira. Nada tem a oferecer a não ser ameaças, degradação da linguagem e dos valores democráticos e republicanos. Em plena sintonia com a moldagem neofascista do inimigo a ser destruído, sequer esboça um mínimo apetite para as questões cotidianas da gestão administrativa.

Moldado para guerra, para a destrutividade pura, fomentando clivagens profundas no interior da institucionalidade, Bolsonaro agarra-se ao seu último avatar de legitimidade política: o fetichismo das formas religiosas de consciência, manipuladas pelas igrejas neopentecostais e sua Teologia da Prosperidade. Ao mesmo tempo, busca regurgitar as fórmulas reacionárias de um nacionalismo de fachada, útil para mobilizar os estratos de sua militância digital, em contraposição a um dito comunismo insidioso, este presumidamente metamorfoseado em capilaridade cultural “gramsciana” onipresente em todos os poros da sociabilidade brasileira.

Ou seja, o bolsonarismo acantona-se nos aparatos de guerra ideológica, de repressão militar e policial e nas indústrias da Teologia da Prosperidade, nas quais só lhe resta a retórica da pulsão da morte, do irracionalismo místico da fé e da apologia fálica às armas e à violência gratuita. Sua debilitação contínua nas redes sociais, em decorrência das revelações feitas na CPI da Pandemia, o desvelamento das negociatas feitas com base na morte de meio milhão de mortos, junto à percepção dos vincos profundos entre governo e gangues territorializadas em assalto ao Estado, têm colocado o governo Bolsonaro na defensiva.

Cabe à esquerda adensar esse isolamento, criar divisões no bloco burguês e estabelecer uma forte unidade popular que se traduza na vida diária e também nas eleições e nas disputas institucionais. Tal unidade “dos de baixo” é o único caminho possível para solapar o aparente derrisório governo e avançar para o indispensável desbloqueio das instituições e da Constituição de 88, interditadas desde o golpe de 2016.

O primeiro passo é derrotar Bolsonaro. Depois desarmar todas as vedações espalhadas pelo tabuleiro estatal que fecharam as instituições para a efetividade dos direitos sociais, mormente após a aprovação da Emenda Constitucional 95 pelo governo golpista de Michel Temer, que solapou os repasses orçamentários paras as aéreas de educação, saúde, habitação, etc.

Bolsonaro é o fruto mais decrépito do momento lógico de desdobramento da contrarrevolução antidemocrática. É fruto também da imposição de um novo ciclo de acumulação primitiva de capital exigido pelos movimentos geopolíticos dos EUA em sua luta contra China e pela crise global do metabolismo neoliberal. As classes dominantes brasileiras são seu braço executivo interno, voltado para o desmonte do Estado e da economia industrial brasileira.

A superação do bolsonarismo demanda a superação dos processos anteriores que o constituíram, a retomada da veia institucional posta pela Constituição de 88, e uma práxis anticapitalista por parte da esquerda brasileira que faça frente à crise profunda de sentido do capitalismo global e seus influxos sobre o Brasil.

Por uma agenda de luta e resistência

A direita brasileira sempre foi muito forte, não obstante a fragilidade de seus aparatos ideológicos, dada a incapacidade de estruturação de um campo hegemônico de ideias. Daí sua dominação quase sempre erguida sobre bases autocráticas, tendo as forças armadas como o principal esteio dos regimes institucionais que desenvolveram ao longo de sua história, repleta de golpes brandos e explícitos. Salvo o Integralismo e o udenismo de Carlos Lacerda nos anos 50, Jânio Quadros nos anos 60, Collor nos anos 80/90, a direita buscou valer-se do exercício direto da coação como instrumento qualificado de construção de seu poderio sobre as maiorias.

Poucas vezes teve êxito diante de mobilização ativa da população. Quando muito, amplificou o “consenso” para extratos das camadas médias, notadamente após a modernização conservadora de sua economia, sem permitir a incorporação das maiorias populares ao mercado interno.

Bolsonaro pretende ser diferente, estabelecendo um tipo de fascismo à brasileira, pautado na mobilização contínua de massas digitais numa convocação explicita à ação direta de seus militantes, assim como pela desconsideração dos mecanismos representativos da democracia liberal.

Contudo, tal mobilização, feita por meio da autoridade de Bolsonaro, ancorou-se na sua imagem de homem comum, simples, tosco como o homem-massa, legitimando-se como a antítese do político profissional, prenhe das liturgias retóricas e das artes fluidas da negociação. Negador da política, das mediações institucionais e partidárias, Bolsonaro limitou-se a esgrimir em sua campanha eleitoral mensagens demagógicas de viés moralista, ao mesmo tempo em que fustigava as bandeiras comportamentais, sexuais, identitárias, sob o argumento de que estas seriam ameaças às maiorias e aos valores sagrados da família, da religião.

Em nenhum momento o bolsonarismo exprimiu uma agenda econômica clara, nem mesmo formulou um projeto de Estado, resumindo-se a brandir um “inimigo” schmittiano a ser debelado. A despeito de tudo isso, junto com a mídia empresarial, Bolsonaro lançou suspeitas sobre os elos entre dirigismo estatal, mercado e corrupção, excluindo de seu foco problemático qualquer relevância da política econômica em consonância com o neoliberalismo. A despolitização completa do mundo, receita clássica do despotismo totalitário da extrema direita, permitiu trazer o debate institucional para o plano das intenções pessoais, morais, personalistas.

Em meio à crise que atinge a credibilidade do governo Bolsonaro – minado pelas denúncias dos cambalachos e escândalos de corrupção -, cabe à esquerda, principalmente ao PT, funcionar como instrumento de politização na presente conjuntura de enfraquecimento do bolsonarismo e de pulverização momentânea da direita, elevando a qualidade do debate público. O enraizamento do PT na classe trabalhadora e a liderança de Lula, cristalizada em 40 anos de trajetória de lutas e de organização partidária, sindical e associativa ininterruptas no cenário brasileiro, precisam ser ativados no combate à extrema direita.

É indispensável, entretanto, que o PT consiga romper com o pendor institucionalista que desequilibrou sua ação frente aos sucessivos governos de 2002 a 2016 e conduziu o partido a secundarizar a estratégia socialista e, por conseguinte, a disputa contra hegemônica com a direita. A tática eleitoral do “paz e amor”, do método aritmético do somatório aleatório de forças políticas e sociais, em contrário só conduzirá, se refeita, a derrotas estrondosas no presente quadro de enfrentamento com a direita. A esquerda não deve, nem pode, na atual conjuntura apresentar-se apenas como força gestora do instituído, feitora da estabilidade, do conformismo político e cultural.

Articulação da unidade da esquerda

Mais do que nunca, cabe ao PT como principal partido da esquerda brasileira vertebrar uma frente com PSOL, PC do B, PCB, etc., que seja capaz de unificar e organizar os trabalhadores para o combate ao bolsonarismo, incluindo os inevitáveis enfrentamentos culturais. Mas também no âmbito eleitoral e institucional, articulando movimentos, realizando deslocamentos de forças numa costura de fora para dentro do poder do Estado. Calibrar as ruas, saber tecer iniciativas comuns com democratas em geral na defesa da Constituição e dos direitos e garantias materiais e formais do Estado Democrático de Direito, isolando Bolsonaro, sem perder a sinergia com a radicalidade dos valores socialistas, anticapitalistas, do incitamento da indignação da juventude, das mulheres, dos negros, das comunidades LGBT, são as tarefas nada simples, postas à esquerda brasileira pelo momento histórico.

A candidatura de Lula ainda não é o centro da ação política da esquerda, mas sim as lutas pela derrocada do governo neofascista de Bolsonaro, a consolidação do bloco histórico de forças operárias e populares em torno de um programa de esquerda, claramente socialista e por isso mesmo profundamente democrático, republicano. A disputa pela saída da crise estrutural passa necessariamente pela definição dos responsáveis por ela, do estabelecimento de quem pagará a conta dos desmandos praticados desde o advento do golpe de 2016.

Sem que vençamos esse debate, modificando a correlação de forças na vida social, pouco poderemos obter na esfera eleitoral-parlamentar, pois o êxito do bolsonarismo como movimento de massa digital deve-se à insatisfação com os rumos e limites de uma institucionalidade capturada pelo Capital e por sua lógica de sequestro dos partidos, de mercantilização da vida e de retirada dos direitos.

Conectar as lutas imediatas contra o bolsonarismo com a construção socialista é crucial. Sem isso não conseguiremos fugir do cerco posto à esquerda pelo capitalismo financeiro, cada vez mais descompromissado com as conquistas civilizatórias legadas pelo liberalismo e pelas democracias modernas.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

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