A esquerda e a manifestação contra Bolsonaro

Ilustração: Mihai Cauli

Lá vamos nós de novo com essa discussão em looping sobre se a esquerda deve ou não atuar junto com forças políticas que apoiaram o golpe de 2016 e que apoiaram ou legitimaram Bolsonaro, pelo menos no segundo turno de 2018.

Em outro artigo escrevi neste blog Terapia Política sobre esse tema (A Democracia Como Fator de Chantagem). Na ocasião eu criticava intelectuais que insistiam em pedir à esquerda tolerância para a formação de uma frente antibolsonaro, pelo impeachment, mesmo junto com quem até pouco tempo atrás dizia que o diabo era a esquerda, em especial o PT e Lula. No artigo acima eu escrevi o seguinte:

  • “As forças econômicas obviamente não apoiam a esquerda, que também é minoritária nos parlamentos, nos governos estaduais, municipais, nas mídias nacionais e regionais, nas forças armadas, no judiciário, no ministério público. A esquerda só é forte nos movimentos sociais, mas esses, apesar de crescerem a olhos vistos, ainda não rivalizam com o poder real, nem perto.
    A única coisa que a esquerda brasileira tem, como “fator real de poder”, desde 1989, é o voto e ainda assim, prioritariamente, nas eleições majoritárias para presidente da República.
    Essa é a força da esquerda: o voto. A esquerda não tem um jornal, uma TV, um banco, nem mesmo um cabo e um soldado para fechar o STF, mas desde 1989 chega pelo menos ao segundo lugar na eleição presidencial.
    Como retira sua força primordialmente do voto, a esquerda brasileira é absolutamente dependente da democracia para continuar a existir, mas sozinha não tem força para sustentá-la, como vimos em 2016.
    Se golpe houver, agora, não será por culpa da esquerda, mas das mesmas forças que sustentaram Bolsonaro em 2018 e que derrubaram Dilma em 2016. Bolsonaro nada poderá fazer sem elas, como não pôde, mesmo tentando, em 2020.”

Agora, o tema volta com a polêmica gerada em razão da manifestação do dia 12/09/2021, que tem entre seus organizadores o MBL e o Partido Novo, mas daqui a pouco retornará com novos temas e personagens, se até lá não sucumbirmos em definitivo no caos.

Desde sempre, minha discordância com os que pedem “ampliação e diálogo” nunca foi com a ampliação e o diálogo, mas de entender que as cobranças deveriam ser feitas da “direita democrática” e dos “liberais” brasileiros (que historicamente sempre foram mais ficção do que realidade), não da esquerda.

Peço licença para fazer um paralelo com a segunda guerra mundial porque poucos eventos na história humana são tão ricos de significados e, ao mesmo tempo, tão dominados por releituras falsas.

O que me interessa aqui especificamente é uma analogia, em especial com a França e a Alemanha do pós-guerra, quando lideranças desses países foram em larga medida absolvidas de colaboracionismo, os nazistas viraram místicos hipnotizadores que dominaram povos inteiros e foram destacados deles. O fascismo não era mais da Alemanha ou de Vichy, mas dos nazistas. O antissemitismo não era mais uma tragédia europeia, mas uma ideologia apenas nazista. Por aí vai.

Por aqui queremos fazer algo parecido, destacar o bolsonarismo das forças que o legitimaram e o apoiaram. Não se trata de dizer que Dória, Eduardo Leite, Mandetta, Simone Tebet ou Alessandro Vieira são iguais a Bolsonaro, mas de lembrar que Bolsonaro sozinho é nada.

Ele não caiu porque os donos do dinheiro ainda não quiseram e se golpe vier será com a anuência de muitas outras forças, dos militares aos financistas. São as forças do outro campo que devem ser cobradas, não só para retirar o infame da presidência, mas para renovarmos um pacto democrático que não sucumba toda vez que algum governo tente implementar mudanças mais ou menos profundas em nossas carcomidas estruturas sociais e econômicas, ainda tributárias de nossa herança escravocrata.

A esquerda, por seu turno, tem feito movimentos políticos claros de ampliação e diálogo, desde o PT, o PSOL e o PC do B, passando por lideranças como Lula, Freixo, Boulos, Dino.

Mas nunca é demais lembrar que a esquerda tem, no máximo, 120 deputados e 15 senadores, e todos sabem da posição desse quase Exército de Brancaleone em uma votação do impeachment de Bolsonaro. O problema é o outro lado. Então, não cabe à esquerda implorar de forma subalterna aliança à “direita democrática” e aos nossos “liberais” contra algo que eles mesmos legitimaram e que têm dado provas continuadas de que não querem jogar ao mar.

O bolsonarismo, afinal, não é novo, já estava nos integralistas, em Medici, em Erasmo Dias, em Ustra, em Nilton Cruz, aliados feios esteticamente, mas essenciais (escondidos no porão e soltos quando necessários), da UDN, da ARENA, do PMDB, do PFL, do DEM, do PSDB, dos Robertos Campos, dos Simonsens, dos Mario Amatos, dos Paulo Skafs.

A diferença dessa vez é que os cães se tornaram protagonistas, puxando os donos. Mas se depender dos donos, eles só querem retomar as rédeas e não abandonar os cães raivosos.

Os cães conduzirem seus donos foi, aliás, uma reação do nosso atavismo escravocrata às tímidas conquistas que arrancamos de 2003 a 2014, inclusive de maior independência geopolítica. Era preciso chafurdar na lama para deter nossa moderada e democrática esquerda que insistia em ganhar eleições, os jogadores foram obrigados a mostrar as cartas e a democracia dos nossos “liberais” se mostrou, mais uma vez, um blefe. Agora, os cães se recusam a recuar, para desespero dos que sempre mandaram neles.

Cabe à esquerda conversar, construir pontes, não se isolar, como já vem fazendo, mas cabe aos que dominam os aparatos permanentes de poder do Estado e da sociedade, mantenedores do status quo sem sequer entregarem os anéis, fazer o que nunca fizeram na história brasileira, salvo espasmos, que é aceitar a democracia.

Vejo algumas pessoas e instituições que apoiaram o impeachment e, depois, Bolsonaro, fazendo reflexões, renovando a fé na democracia (de forma sincera ou oportunista, não sei dizer), mas Bolsonaro ainda é presidente, continuamos sem ter certeza de que teremos eleições em 2022, se as eleições serão realizadas sem rasteiras e, principalmente, se a esquerda tomará posse e governará, caso ganhe em 2022.

Em toda essa nova crise gerada por Bolsonaro, durante e após o 7 de setembro, a esquerda só assistiu de camarote, não sei se notaram.

De um lado, Bolsonaro e sua horda, do outro, o STF, formado quase exclusivamente por Ministros que legitimaram todos os passos do País em direção ao abismo, inclusive dando o passo à frente. Sejam bem-vindos de volta, mas até onde vão os compromissos democráticos da Corte, não sabemos.

No Congresso, também vemos resistências para além do campo da esquerda, mas as lideranças tíbias e caricatas de Lira e Pacheco não passam nenhuma segurança de compromisso com a Democracia. As forças armadas… bom, o fato delas ainda serem parte relevante da equação diz muito sobre nossa “democracia”.

A esquerda só assiste, tensa, sem poder real de intervenção.

Não, não considero a esquerda irrelevante, construímos um caldo político que vou chamar genericamente de progressista, essencial para a manutenção de qualquer estabilidade política, mas essa representação social relevante não tem participação importante nos aparatos permanentes de poder do Estado e da sociedade, insisto.

Portanto, muito mais importante que debater participação em eventos pelo impeachment junto com MBL, Partido Novo, PSDB, FEBRABAN, FIESP, Globo, Folha de São Paulo, Estadão, enfim, é cobrar compromisso democrático desses e de outros atores fora do campo da esquerda.

Eles aceitam, de fato, finalmente, isolar os cães raivosos, estejam onde estiverem, até que um dia uma sociedade mais igualitária os faça minguar ou desaparecer (sonhar não custa nada), ou ainda pretendem a eles se aliar quando convier? Teremos mais “bolsodórias” no futuro, mais operações policiais e judiciais criminalizadoras da esquerda, outras instituições de financiamentos nebulosos como IPES e MBL desejosos de destruir a esquerda e não pela legitimidade do voto?

A esquerda brasileira não tem que pedir a conversão de ninguém ao seu ideário, naturalmente, mas tem legitimidade histórica para colocar em pauta o que é de fato relevante: queremos ou não ser uma Democracia?

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