Calma leitor, este artigo não defende que a iniciativa privada seja a solução para todos os males. É um artigo realista, escrito no meio da pandemia, quando temos no comando do Ministério da Economia profissionais em completo descompasso com seu tempo. O Brasil assiste incrédulo a uma equipe econômica tentando segurar com unhas e dentes suas ultrapassadas convicções baseadas em privatizações indiscriminadas, desregulação de mercados, limitação de gastos públicos e ataques aos direitos trabalhistas, cegos para o fato de que cinco anos seguidos de uma fórmula baseada na política seletiva de ortodoxia nas finanças públicas apenas afastaram investimentos produtivos e espalharam pobreza. Parece que não viram o desastre do Macri na Argentina. Negam a revolta do povo chileno. Ignoram o recorde de crescimento e distribuição de renda da era Morales na Bolívia. Fingem que não veem os dados animadores que começam a surgir de uma nova Argentina, liderada por seu moderníssimo ministro das finanças, ex-líder de uma das maiores escolas de economia do planeta. Esquecem o sucesso da economia dependente do apoio estatal dos tigres asiáticos. Desconhecem o êxito de políticas tributárias distributivas, como a da Austrália, em que 70% dos tributos incidem sobre a renda e a propriedade. Não mencionam o abandono dos princípios do Consenso de Washington pelo FMI e o Banco Mundial. Propositalmente escondem do brasileiro a realidade do Estado moderno. Com as mortes se acumulando, há poucos dias ouvimos o líder da turma afirmar que “se tivermos que arriscar um lado, vamos arriscar para o lado do Reagan”, esquecendo de avisar a 90% do Brasil que as políticas de Reagan apenas enriqueceram quem já era rico e transformam a terra das oportunidades num país de pobres sem mobilidade social.

Nos últimos cinco anos em que a dose da fórmula neoliberal foi progressivamente aumentando, segundo a FGV, o Brasil passou por um forte processo de aumento da desigualdade, em que a renda dos 50% mais pobres da população caiu 17% e dos 1% mais ricos cresceu 10%. Situação que piorará após a crise da Covid-19. Não coincidentemente, o mesmo período foi caracterizado por um processo legislativo fortemente pró-empresa, que passou a ter mais liberdade para decidir em todas as áreas. A estrutura legislativa hoje existente gera inúmeras oportunidades para suas lideranças mostrarem que possuem responsabilidade social corporativa e atuam em benefício de todos os seus stakeholders.

Enquanto a economia estiver sendo governada como se estivéssemos na década de 70 e as chances de um realinhamento da atuação do Estado são diminutas, é hora de voltarmos as atenções para a contribuição que a iniciativa privada pode dar ao Brasil. Um Estado menor pressupõe que outras instituições assumam mais responsabilidade por funções outrora desempenhadas pelo governo. O neoliberalismo radical do Brasil de hoje está intrinsicamente ligado à ética Weberiana, segundo a qual os mais afortunados da comunidade assumirão a tarefa de cuidar dos mais pobres. Não apenas por meio de ONGs, que travam uma batalha diária com a falta de recursos, mas também com instituições voltadas ao lucro. Tal atitude está em perfeita sintonia com o pactuado por quase 200 CEOs das maiores companhias americanas, que redefiniram o propósito da empresa em 2019, de forma a fazer suas lideranças pensarem não apenas no acionista, mas em toda a comunidade (Business Roundtable Statement of the Purpose of a Corporation). As ideias de Paulo Guedes, vindas do economista Milton Friedman, no sentido de que o lucro é o único propósito empresarial, perdem cada vez mais espaço para a teoria de economistas contemporâneos como Joseph Stiglitz, defensor da tese de que a responsabilidade social corporativa é a obrigação fundamental de qualquer companhia. Publicações especializadas em negócios, como The Economist e Financial Times passaram a adotar linha similar.

A atuação empresarial voltada ao social é particularmente importante no Brasil, país onde a fatia mais privilegiada da população tem uma clara falta de empatia com o sofrimento dos mais pobres, como prova a naturalidade com que reagem às tragédias diárias, como o assassinato indiscriminado de pretos e pobres no Rio de Janeiro pela polícia. Boa parte da classe média engole sem questionar a ideologia empresarial ultrapassada. São capazes de manifestações de revolta se o Estado deixa o poste sem luz, o buraco destapado ou a água com mau cheiro, mas convivem tranquilamente com concessionárias privadas responsáveis por problemas similares, mesmo quando forçados a passar horas ao telefone reclamando com o atendimento eletrônico. A ineficiência empresarial encontra paciência budista, mas o sofrimento humano, indiferença. Assim, a responsabilidade social corporativa é também uma forma das empresas ajudarem o país e se tornar mais humano, pois seus empregados e a comunidade a qual pertencem serão influenciados pelos atos corporativos.

Estamos presenciando durante a crise da Covid-19 casos admiráveis de empresas ajudando a diminuir as mortes e o impacto social do vírus, com participação ativa na construção de hospitais de campanha, confecção e distribuição de máscaras, arrecadação e distribuição de alimentos e manutenção de empregos e salários. O momento mostra que existe mentalidade empresarial voltada para a comunidade e o pobre, apesar de exemplos minoritários que merecem ser esquecidos, como o do banqueiro que sustentou o sucesso da política contra o vírus pela diminuição da propagação entre os mais ricos, ou da parada empresarial-lobista que acompanhou o Presidente da República ao STF pedindo o fim do isolamento. No entanto, o que se defende aqui é uma atuação que vá além da filantropia, que integre a responsabilidade social corporativa no objeto-fim da empresa.

Existem inúmeras formas pelas quais empresas podem exercer a responsabilidade social na concretização de seus objetivos, tais como: (i) indo além do que prevê a legislação na análise dos impactos sociais de projetos de infraestrutura; (ii) negociando incentivos fiscais que tragam benefícios não apenas para a empresa, mas também para a comunidade, evitando o chamado race-to-the-bottom por estados e municípios na atração de investimentos; (iii) garantindo que seus fornecedores sigam os mesmos requisitos ambientais e trabalhistas que a empresa pratica; (iv) tomando precaução para que, em operações imobiliárias com prédios ocupados, comunidades que estejam morando no imóvel adquirido tenham direito a uma habitação digna e, (v) internamente, estabelecendo metas concretas de diversidade que garanta não apenas contratação e manutenção de empregados de raças, etnias e opções sexuais diversas, mas também a ascensão dos mesmos a cargos de liderança.

O Brasil precisa desesperadamente de lideranças empresariais inclusivas, que reconheçam o valor da diversidade para a geração de resultados, mas que também saibam que pessoas diferentes devem ser tratadas de forma diferente e que o conceito de meritocracia se aplica apenas às pessoas que largaram do mesmo ponto de partida. Lideranças empresariais modernas não podem sucumbir a pressões financeiras de curto prazo, por ser esta a principal razão para políticas falhas de responsabilidade social corporativa. Devem ter consciência de que às vezes é preciso ir além do que prevê a legislação para concretizar a função social empresarial.

Se o discurso parece utópico ou contaminado por polianismo, vale encerrar com a linguagem que o empresário nacional mais entende: a responsabilidade social corporativa é bom negócio. Reduz os riscos à reputação; de perda de talentos; de perda do valor das ações e da marca; e, o custo com seguros. De quebra, faz dela um admirável agente no alcance da justiça social. A empresa jamais vai cumprir o papel do Estado, mas enquanto o país é guiado por uma equipe econômica presa ao passado, pode atenuar os efeitos nocivos do radicalismo neoliberal e ajudar a modernizar a mentalidade do brasileiro.