Resenha do artigo “Como a Teoria das Elites explica a perpetuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF”, de Márcio Calvet Neves

Na democracia liberal brasileira, as elites possuem os mesmos interesses e se aglomeram em um bloco único de poder ou essas elites são grupos difusos que possuem interesses e graus de poder distintos? Esse é o problema colocado por Márcio Calvet Neves no seu artigo publicado na Revista Tributária e de Finanças Públicas 2023, ao discutir o retorno para o governo do Voto de Qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

Como ele explica, o contribuinte que deixa de pagar os tributos que o Estado entende devidos tem o direito de se defender por meio de um processo administrativo junto ao CARF. A composição do CARF é paritária, onde metade dos julgadores é indicada pela Fazenda Pública e a outra metade é composta por “representantes dos contribuintes” — em sua maioria, indicados por confederações empresariais.

Por seu caráter inerentemente conflituoso e dada a possibilidade de impedir a cobrança de tributos ou aumentar a receita do governo, justifica-se o interesse das elites em expandir sua influência no órgão. Como representante das elites, o presidente Bolsonaro, em abril de 2020, sancionou a Lei 13.988/2020 (ante uma emenda à Medida Provisória 899/2019), extinguindo o Voto de Qualidade.

Até então, quando havia empate nas decisões do CARF, prevalecia o voto do presidente da câmara de julgamento — sempre um representante da Fazenda —, o chamado “Voto de Qualidade”. Além da extinção desse mecanismo, a lei também limitou o acesso ao CARF apenas aos casos de valor superior a 60 salários mínimos; na prática, excluindo o direito das pequenas empresas de discutir eventuais cobranças de impostos. A  regra garantiu vantagens aos grupos empresariais, uma vez que, em caso de empate, a decisão passou a ser a extinção definitiva da cobrança. Conforme explicado por Márcio Calvet Neves, porque “a União Federal é impedida de recorrer ao Poder Judiciário de uma decisão contrária no CARF (um conselho da própria União Federal, que não pode litigar contra ela mesma)”.

Com a volta do PT ao Governo Federal, foi enviado ao Congresso o PL 2.384/2023, para implementar a volta do Voto de Qualidade no CARF. Embora tenha sido aprovado pela Câmara Federal e pelo Senado, o retorno do Voto de Qualidade continuou sendo objeto de ataques e pressão para alteração protagonizados pelas entidades empresariais e pela OAB.

Márcio Calvet Neves relaciona os movimentos mais importantes que resultaram na deformação da proposta original, que deixava o poder decisório nas mãos do poder público. Entre eles os seguintes:

  1. Os presidentes do Senado Federal (Senador Rodrigo Pacheco) e do Supremo Tribunal Federal (Ministro Luís Fux) criaram, por um Ato Conjunto, uma Comissão de Juristas que elaborou o PL 125/2022, com a manutenção da regra favorável às empresas privadas. Essa comissão tinha entre seus integrantes diversos profissionais ligados ao mercado, alguns inclusive advogados de processos relevantes em trâmite no CARF – revelando uma convergência nos interesses das elites privadas e governamentais;
  2. A OAB, por sua vez, ajuizou, em 31 de janeiro de 2023, a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 7.347/DF, contra a proposta do governo Lula. Essa ação foi o principal instrumento para a defesa das elites, uma vez que foi no âmbito dela que a OAB e o Governo Federal negociaram a solução que veio a ser aprovada pelo Congresso. Diversos advogados envolvidos em processos de vultosos valores no CARF constam entre os signatários, novamente revelando que as instituições são controladas pelas elites e para as elites;
  3. As empresas da agroindústria – que discutem autuações bilionárias no CARF – atuaram através da Frente Parlamentar da Agropecuária, emitindo uma nota oficial contra o PL 2.384/2023. Dentre os principais argumentos, configuram-se que o retorno do Voto de Qualidade feriria a forma “técnica e justa” que caracterizaria a atuação dos julgadores e que o governo estaria gerando caixa “às custas de quem gera emprego e renda ao país”;
  4. A Associação Brasileira das Sociedades Anônimas de Capital Aberto (ABRASCA) argumentou que o PL 2.384/2023 seria uma violação à segurança jurídica e provocaria o afastamento de investimentos;
  5. A grande imprensa, por sua vez, controlada por grupos empresariais familiares, constantemente defende o interesse das demais elites. Nesse caso, o Globo publica em 26 de janeiro de 2023 o editorial cujo título foi “Solução para Crise Fiscal Não é o Bolso do Contribuinte – Critério de desempate favorável ao Fisco no CARF aumentará arrecadação, mas não é a melhor resposta ao desafio”;
  6. A elite acadêmica do ensino de direito tributário, majoritariamente, além de docentes, trabalha para e/ou pertence à elite do mercado. Logo, tenderam a se posicionar a favor das empresas.

Essa movimentação política indica que tanto a elite do governo (Congresso e Poder Judiciário), quanto as elites empresariais, lutaram pela manutenção da regra aprovada no governo Bolsonaro. Segundo o autor, a Teoria das Elites explica essa confluência de interesses, (não fazem parte do conselho outras lideranças da sociedade civil, como dos sindicatos e dos movimentos sociais), e está limitada aos votos dos representantes empresariais que habitualmente convergem entre si, denotando a aliança e a homogeneidade das elites de diferentes setores.

Embora o Voto de Qualidade tenha sido restabelecido, o PL foi aprovado com inúmeras concessões de benefícios para as empresas, tais como: (i) a extinção de multa (que corresponde a 75% ou 150% do valor do tributo devido); (ii) o impedimento de representação para fins penais; (iii) a extinção de juros se a empresa não recorrer ao judiciário; e (iv) inúmeras facilidades para pagamento do débito em parcelas e com o uso de créditos fiscais próprios e de terceiros.

Foi mantido, portanto, o tratamento privilegiado para a elite empresarial. Essa conquista se deu através da luta política das diferentes elites, atuando de maneira coordenada e conjunta. A luta de classes existe independentemente de ser reconhecida ou não, e enquanto a classe trabalhadora não for convocada para a luta e a defesa dos seus direitos, a elite continuará a galgar vitórias, sem ao menos vivenciar o devido enfrentamento.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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