Foto: Massimo Pinca/Reuters

O que fazer com o ano letivo de 2020, tão impactado pela Covid-19? Como estancar o sofrimento daquelas crianças e adolescentes que dependiam da merenda e do ambiente escolar que, para parte deles, é mais amistoso e acolhedor que seus próprios lares? É possível evitar que o regime improvisado de atividades não presenciais (inclusive aulas) aumente ainda mais a distância entre pobres e ricos? Como atender escolas particulares que sofrem para manter suas receitas viáveis ou professores que se desesperam com a perspectiva de perda de emprego? E como devolver a vida aos pais que se esmeram para compatibilizar seus trabalhos (seja ele home office ou não) com a crescente demanda escolar de seus filhos, agora dentro de casa o dia todo? As atividades não presenciais darão conta de atender ao mínimo necessário para a formação dos estudantes?

Este pequeno artigo tem a ambiciosa missão de apontar cenários, nos quais as demandas acima sejam atendidas da melhor maneira possível. Ele também é um apelo ao debate e à mobilização da sociedade, em especial dos setores diretamente afetados – gestores, professores, funcionários, pais e alunos de instituições de ensino. Tal ação participativa é ainda mais necessária e urgente, já que nossas autoridades estão totalmente perdidas.

Antes de tudo, na construção de estratégias para o enfrentamento da crise na área da educação, três premissas devem ser consideradas. A primeira e mais importante diz respeito à impossibilidade de retorno às aulas presenciais ainda em 2020, conforme defendido em artigo publicado aqui no Terapia Política sob o título “Covid-19 e o necessário fim do ano letivo”. Com os números projetados para a pandemia nos próximos meses, além de arriscar a saúde de nossas crianças, a volta às aulas presenciais as transformará em potenciais algozes de seus próprios pais, irmãos e avós. Tal decisão também representaria quase uma desistência do combate ao vírus por meio de isolamento social, dado o caráter de aglomeração das salas de aulas e a permeabilidade das crianças na sociedade.

Em tempo, dados que indicam que crianças estão entre os grupos menos afetados pela doença e que não seriam transmissores eficientes têm sido usados como argumento para a volta às aulas presenciais (1). Tal ideia é bastante perigosa. Embora não haja ainda estudos controlados que nos permitam conhecer mais sobre a contaminação em escolas, dadas as condições, é claro o risco de contaminação. Por exemplo, no Brasil, cerca de 40% dos alunos (aproximadamente 200) da Escola Preparatória de Cadetes do Ar testaram positivo para o vírus, devido a atividades presenciais da escola. Fora do Brasil, houve casos de surtos entre alunos na Coreia do Sul, na Alemanha, na França e em Israel, onde uma única escola chegou a ter 130 crianças infectadas. Segundo Eduardo Massad, professor titular da Escola de Matemática Aplicada da FGV, no caso de voltarmos às aulas presenciais em agosto/setembro, o número de crianças mortas pela Covid-19 subirá de pouco mais de 300 para 17 mil em poucos meses (2).

A segunda premissa por trás dos cenários aqui apresentados se depreende da primeira. Tendo por base a gigantesca desigualdade de acessibilidade digital entre alunos (e escolas) Brasil afora e o encerramento inexorável de aulas presenciais, impor a reprovação àqueles estudantes que não conseguirem alcançar o rendimento escolar que se deseja pode ser extremamente injusto, especialmente considerando o seu direito à formação com a oferta do conteúdo mínimo exigido.

Uma terceira premissa que deve ser considerada na tomada de qualquer decisão é a da incerteza sobre o estado das coisas em fevereiro/março de 2021.

Sendo assim, o primeiro ponto deste texto, e talvez o mais importante, é que qualquer que seja a ação tomada em relação ao ano letivo de 2020, ela deve considerar que, provavelmente, não haverá mais aulas presenciais e que o tratamento aos alunos no final do curso deverá ser idêntico, independentemente de seus desempenhos. Considerando, por fim, a terceira premissa, condições devem ser criadas para que, caso não possamos voltar às aulas presenciais em fevereiro/março de 2021, tenhamos a chance de reagir de modo mais eficiente do que fomos neste ano.

Por outro lado, como o “conteúdo” escolar não será apropriadamente desenvolvido, fica claro que somente dois cenários se impõem como promotores de um tratamento equânime entre escolas e alunos Brasil afora: no primeiro, todos os alunos repetem o ano de 2020 em 2021 como sugeriu anteriormente um dos autores deste artigo e, em um segundo cenário, como diria a colunista do Globo, Andrea Ramal (3), matriculam-se “os alunos na série seguinte (exceto no caso dos anos finais do ensino fundamental 1 e 2 e do ensino médio (para os quais uma solução particular tem que ser elaborada)” e trabalha-se “em 2021 com um plano de estudos especial para cobrir os conhecimentos das duas séries”.

Esses são os dois cenários possíveis pelos quais deveríamos lutar. Por mais que saibamos do impacto social sobre crianças e adolescentes pobres, a preservação das suas vidas e das de seus parentes é prioritária, como já colocado. Além disso, o cancelamento do ano (com ou sem aprovação “facilitada”) é fundamental, justamente para que esses não sejam prejudicados em relação àqueles, cujos lares e escolas apresentam infraestruturas muito superiores e que foram capazes de dar alguma continuidade remota ao ano letivo. Ressaltamos aqui também a maior fragilidade das camadas mais pobres da sociedade em relação à Covid-19, seja pela maior dificuldade de acesso ao sistema de saúde, seja pelas inferiores condições sanitárias de suas vizinhanças ou mesmo pela simples precariedade financeira de suas estruturas familiares (por exemplo, a morte de um parente próximo é, potencialmente, muito mais desestruturante para a vida de uma criança pobre do que para a de uma rica).

Ademais, e isso precisa ficar claro, a suspensão de aulas presenciais não deve implicar em desligamento ou perda da conexão entre alunos e respectivas escolas, muito pelo contrário. Conforme o caminho que a sociedade opte por trilhar, temos uma longa lista de tarefas minimizadoras de impacto a desenvolver e cumprir. Algumas delas podem mesmo incluir atividades presenciais, mas sem compromisso com o cumprimento do currículo referente ao ano letivo, o que acaba sendo importante também como alívio para pais e mães, hoje bastante sobrecarregados.

Há pontos positivos e contrários em ambos cenários. No caso do simples encerramento do ano letivo, teríamos que ser capazes de manter alunos motivados e aptos a ingressar novamente em suas respectivas séries. Uma rotina de revisão de matérias do ano anterior seria necessária. No caso de optarmos pela aprovação maciça de alunos, as discussões seriam mais focadas em uma eventual alteração de todo o currículo escolar de modo a não haver carga desnecessária sobre alunos e pais em 2021 com a adoção de aulas de reforço e atividades complementares. Ao mesmo tempo, quando houver condições do desenvolvimento de aulas não presenciais, ou mesmo naqueles casos em que haja condições de atividades presenciais, pode-se pensar em pautas não curriculares (temas transversais) para a introdução do aluno nas grandes discussões do momento, além de promover o aprofundamento nos saberes relacionados à pandemia. Talvez, inclusive, não fosse muito pensar, nesse momento, em estabelecer uma ampla discussão na sociedade sobre o caráter ainda demasiadamente conteudista de nossos currículos.

É importante deixar claro também que, ao se falar em educação e, particularmente, quando o assunto é algo tão excepcional e emergencial quanto o cancelamento de um ano letivo, dificilmente um texto tem como fugir de um caráter fortemente opinativo. Sendo assim, é absolutamente natural que haja divergências e preocupações com todo tipo de reflexo ou efeito colateral que acompanhem tais cenários. Também são esperadas propostas diferentes e igualmente bem embasadas. Mesmo neste artigo, houve divergência entre os autores sobre a adoção ou não do cancelamento do ano, dada a complexidade do assunto. Mas é simplesmente impensável deixar o barco navegando ao gosto da maré, sem estabelecer um amplo debate e deixando que cada instituição de ensino desenvolva, isoladamente, sua solução, sem que esta seja minimamente norteada por diretrizes mais gerais. Num país com tantas desigualdades e tantos prejuízos aos estudantes mais carentes, não é possível errarmos pela inércia.

Com o repentino aparecimento da pandemia, não houve tempo nem planejamento para ações coordenadas do poder público. Entendemos que já estamos em um momento de ensaio sobre atividades não presenciais inexistentes antes da pandemia e que o retorno ao calendário se faz de forma ainda improvisada e tentativa. Decisões pontuais, como a volta opcional às aulas presenciais, em que se empurra a responsabilidade da presença em salas de aula para pais e alunos são equivocadas, a começar por estimular a falta de solidariedade com o outro em tempos de pandemia. Escolas privadas têm realizado pesquisas com os pais/responsáveis para avaliar se enviariam seus filhos presencialmente à escola ainda em julho, como propõem alguns estados. Além de expor professores e demais funcionários de escolas, tal atitude colocaria em vantagem os pais e alunos menos conscientes sobre o seu papel na sociedade. O péssimo exemplo dado há poucas semanas pelos “jovens” do Leblon nos mostra a necessidade de aprimorar a percepção dos nossos futuros cidadãos sobre sua conduta perante o mundo.

Haverá, inevitavelmente, danos para todas as partes. Escolas estão tendo grandes prejuízos, professores estão perdendo seus empregos e alunos estão perdendo parte importante de sua rotina de crescimento e inclusão. A mitigação desses impactos é possível, mas depende da nossa capacidade de estabelecer consensos e envolver a sociedade no debate.

Nesse sentido, as autoridades, que hoje parecem não ter qualquer plano estruturado, têm que ser persuadidas a assumirem a liderança de todo esse processo de maneira responsável. As esferas federal, estadual e municipal devem fazer a sua parte de maneira coordenada. Escolas particulares devem ser conclamadas a rediscutir com pais e estudantes o valor de suas mensalidades e o governo deve estabelecer auxílios emergenciais efetivos que minimizem os prejuízos dessas instituições de ensino.

Escolas públicas terão, por sua vez, a missão de prover seus alunos e servidores com o aparato tecnológico necessário para reduzir os prejuízos inerentes às atividades não presenciais que já se iniciam em vários estados e no Distrito Federal, tais como empréstimo de equipamento (computadores, tablets e smartphones), acesso digital por meio de pacotes de dados móveis e/ou internet banda larga, envio de material impresso ou em mídias digitais, plataformas intuitivas de salas de aulas invertidas e demais programas/aplicativos necessários. Em determinados casos, ações só são efetivas quando adotadas sob medida, investigando os alunos um a um para se tomar ciência de sua condição social e de sua possibilidade ou não de acompanhamento das atividades. Seria inadmissível, também, manter crianças e adolescentes em casa sem provê-los com cestas básicas em lugar da tão necessária merenda escolar. Aos servidores que atuam presencialmente devem ser disponibilizados meios de distanciamento e EPIs que reduzam a probabilidade de contágio. Os professores, por sua vez, na atuação remota, não podem prescindir de acesso digital e capacitação para as atividades não presenciais. Para todos os envolvidos, torna-se premente treinamento em técnicas de saúde e segurança, além de apoio psicológico.

Qualquer cenário diferente desse, em que a sociedade e a classe política se debrucem com seriedade sobre a questão e abracem as soluções possíveis, resultará em mais desigualdade e trauma, principalmente para aqueles de maior vulnerabilidade social.

Marcos Raposo
Biólogo, professor e pesquisador do Museu Nacional/UFRJ. Doutor em Zoologia e pós-doutor em Filosofia das Ciências pela Sorbonne.

Nilton Nélio Cometti
Professor de ensino básico, técnico e tecnológico. Atual diretor-geral do Campus Planaltina do Instituto Federal de Brasília, doutor em Agronomia, área de interesse Educação Profissional.

Referências:

(1) //g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/ post/2020/07/13/ o-dilema-da-volta-as-aulas.ghtml e www.childcarecanada.org/ documents/child-care-news/ 20/07/summary-school-re- opening- models- and- implementation – approaches- durin; (2) revistacrescer.globo. com/ Criancas /Saude/noticia /2020/07/ coronavirus – volta-aulas- pode-causar- morte-de-17-mil- criancas-estima- professor; (3) // oglobo.globo. com/opiniao/a-escola-deve-reprovar-alunos-este-ano-1-24522085? utm_source= aplicativoOGlobo& utm_medium =aplicativo&utm_ campaign= compartilhar