Nas crises, Maria buscava as águas dos rios e cachoeiras para renovar as energias. O cristalino frio das águas lhe relaxava corpo e mente. Seguia um ritual para mergulhar nas águas como se fossem uma igreja. Contemplava sua beleza, deixava-se envolver pelo chiado do seu curso, esvaziava a mente atenta aos detalhes naturais das pedras e às formas inconstantes do movimento das águas.  Era quase hipnótico. Só depois de esvaziar a mente tocava a água enquanto rezava em silêncio. Depois afundava um pé. E outro. Andava em direção a onde pudesse ter seu corpo totalmente envolvido pela santidade das águas.

Contudo, as mesmas águas que purificam e renovam a vida, também sujam, destroem e matam. As águas foram entrando por debaixo da porta. Encharcaram o grande tapete da sala sem pedir licença. “As águas não veem nada de belo e sagrado aqui”, pensou. Em pouco tempo, não se via mais os tapetes. Depois, nem os tampos das mesas. Subiu rápido até que o primeiro andar submergiu. Maria abrigou-se no segundo com as coisas leves que conseguiu salvar das águas.

Tentou dormir, mas não tinha como. As águas movimentavam as paredes e as ideias pessimistas de Maria. “A casa vai cair, meu Deus!”. Pensou em fugir, mas não tinha como e nem para onde. Pela Internet, lia más notícias. Vai piorar! Diziam quase todas elas. Algumas mentiram. Coisa de política. Nem mesmo as tragédias eram suficientes para que os que lutam pelo poder deixem de lado a luta. Ingenuidade de Maria, que acha que vida era coisa mais importante do que poder. Falavam absurdos, Maria ouvia desconsolada. O sol do dia seguinte não trouxe tranquilidade. Ainda chovia. Ainda tremia a casa. Ainda não sabia para onde ir. As águas molharam o último degrau da escada.

Rezou. Não por ela, mas por outros que descobriu em situação pior do que a dela. Viu pela janela o vizinho que tentava retirar as águas de dentro de casa com um balde. Tirava de dentro e jogava fora como se a água de fora não continuasse a ir para dentro. Não era estupidez, pensou, era desespero. Ele parecia buscar, a cada balde jogado para fora, a sensação de que todo aquele aguaceiro tinha solução. Que ela estaria nas mãos dele. E que ele não estava rendido. Maria pensou em também pegar um, mas todos os seus baldes estavam submersos no andar de baixo.

Chorou ao saber que havia mais gente tentando ajudar. Era bom saber que seu desespero era entendido por outros. O desespero na solidão é muito pior que o desespero compartilhado. Era quase noite quando um pequeno barco atracou em sua casa. Saiu pela janela do quarto para longe da casa. Para longe da sua vida vivida até aquele dia. Certa de que os dias por vir seriam bem diferentes. Levou poucas roupas, documentos, cartões e a escova de dentes.

No abrigo, encontrou de perto gente em situação pior do que a sua. Gente que perdeu gente que amava. Gente que não sabe onde foi parar gente que lhe importa. Gente que perdeu tudo, até a escova de dentes. Deixou suas poucas coisas em um canto e foi cuidar de cuidar dos outros. Ao invés de pegar um balde, pegou em mãos. Olhou nos olhos e procurou consolar. Buscou com seu olhar os olhos tristes de quem estava desamparado só para dizer “você não está sozinho”.

Talvez, fosse tão inútil quanto o esforço do vizinho com seu balde, mas não importava. Assim como não importava ao vizinho a inutilidade aparente de seu esforço. Era o jeito dele de estar ali e este é o jeito de Maria estar ali. Cada um lida com o trágico à sua maneira.

Interrompeu seus pensamentos com os aplausos dos que assistiam pela TV do abrigo o resgate bem sucedido de um cavalo caramelo.

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Ilustração: Mihai Cauli
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