Em meu período de pós-doutorado, feito na França em 2017, me aprofundei nas relações da pós-modernidade com as classificações biológicas. Essa condição pós-moderna, também referida como Modernidade Líquida pelo sociólogo Zygmunt Bauman, é extremamente multifacetada e complexa, mas pode ser descrita, em poucas palavras, como a desilusão com as grandes explicações gerais do mundo, dentre elas, as fornecidas pela religião e a ciência. Ela também não pode ser entendida sem se considerar seus sintomas principais, como a multiplicação de narrativas menores e transitórias, o niilismo (incapacidade de discernir entre as pequenas narrativas) e a hiper-realidade (substituição do real pela ficção).

Ao retornar ao Brasil, em 2018, a pós-modernidade não tardou a se abater sobre mim em todas as suas cores e intensidades. Ela, a grande destruidora de verdades e fatos, esteve presente no grande incêndio de 2 de setembro que destruiu o prédio do Museu Nacional e os milhões de fatos e verdades lá conservados. Nada mais metafórico e explicativo do que aquelas chamas. Em termos históricos, aquela destruição de um museu de fatos também contrastava com a abertura, dois anos antes, de um museu sem acervos, muito mais focado na própria arquitetura espetaculosa e na exploração de narrativas construídas com ajuda de imagens digitais – o Museu do Amanhã.

Aqui eu defendo que a degradação de nossos acervos, mais do que representar um evento histórico pontual, é uma consequência quase inevitável da condição pós-moderna. Mostramos, ainda, que a reversão dessa tendência é de fundamental importância na preservação de nossa identidade como espécie.

Essa história começa durante e após o Iluminismo, quando filósofos, pensadores e mesmo o cidadão comum, estimulados pelas conquistas de Copérnico, Giordano Bruno, Kepler, Galileu e, principalmente, pela física newtoniana, passaram a acreditar que a ciência descortinaria o mundo e revelaria a realidade das coisas. Os filósofos positivistas acreditavam, por exemplo, que pelo pleno conhecimento das partes, dominaríamos o todo. Conheça bem suas células e controlará bem seu corpo. Conheça bem um homem e conhecerá a humanidade. Use a ciência e será capaz de erigir um sistema ético e moral impecável.

Entretanto, não tardou à própria filosofia impor perguntas constrangedoras à ciência. Poderíamos realmente saber algo, ou estaríamos amaldiçoados eternamente pela parábola da caverna de Platão? Nossos sentidos permitiriam que tivéssemos certezas sobre o mundo? A fria razão poderia ser usada em um saber que se inicia na tórrida percepção?

Ao dar suas respostas a essas questões, Kant nos mostrou que o fato só se constitui como tal dentro de nós, como representação do mundo. Mais tarde descobriríamos, inclusive, que além dos filtros ligados a nossos sentidos, os fatos também eram moldados pelos sistemas de valores e saberes de quem os percebia, fenômeno mais tarde chamado de estrutura paradigmática pelo filósofo Thomas Kuhn. Fatos eram, então, cada vez mais, uma construção humana, subjetiva e distante daquela impressão original de entidades absolutas e estáticas. Em uma certa perspectiva, fatos se assemelham a hipóteses. A velha frase “contra fatos não há argumento” perdia, cada vez mais, sentido. A maneira como eu ou você percebemos o mundo é, e sempre será, única. Tão única quanto um rosto.

Com fatos e verdades desconstruídos como entidades absolutas, aos filósofos positivistas restava a esperança de que fosse construída uma moral baseada em conhecimento científico. Mas então vieram duas guerras mundiais e duas bombas atômicas. A ciência provava não ser capaz, sozinha, de erigir tal senso ético e moral.

Nossas verdades e otimismo escorriam pelos dedos e coube ao filósofo Karl Popper a tarefa de lacrar o caixão positivista. Segundo ele, hipóteses somente seriam científicas se fossem admitidamente falseáveis. O “só sei que nada sei” socrático estava, de uma vez por todas, incorporado à ciência. Nenhuma hipótese poderia jamais ser considerada definitivamente verdadeira. Todas são refutáveis, transitórias e mais uma representação da realidade do que o real em si. Não existiriam mais, a partir de então, hipóteses científicas provadas. Existem hipóteses testadas e corroboradas. Essa pequena mágica fez com que a ciência crescesse e evoluísse mais que qualquer outra estrutura de saber.

De fato, curiosamente, a ciência, que é tida como carrancuda e arrogante, passou a ser, talvez, o mais aberto dos sistemas de saber. Como ela passou a se ver mais como tradução do mundo do que o mundo em si, era natural, inclusive, a existência simultânea de modelos explicativos concorrentes. Às vezes, mais de uma ferramenta era necessária na nossa relação com a realidade. Esse é o caso da relatividade e da mecânica quântica, sistemas considerados científicos, mas que não falam a mesma língua. Nossos modelos e teorias, para usar uma parábola clássica de Freud, são como um farol, à noite, iluminando o mar para que os navios naveguem em segurança. Eles iluminam o que interessa, enquanto o resto permanece na penumbra.

Outro exemplo interessante e pouco dado fora da biologia é o das espécies animais e vegetais. Espécies são grupos de espécimes (indivíduos) definidos a partir de critérios decorrentes de conceitos. Há diversos conceitos diferentes de espécie na literatura e cada um deles, potencialmente, pode resultar em agrupamentos diferentes de indivíduos. De modo bem simplificado, há cientistas que consideram a reprodução entre indivíduos de grande importância para a definição de espécies; há aqueles que consideram as relações de parentesco mais importantes; há aqueles que consideram as similaridades e diferenças morfológicas como primordiais; há até aqueles que acreditam que o que importa são as distâncias genéticas entre populações; e há aqueles que simplesmente obedecem a seus orientadores, o que é o caso de meus alunos.

O resultado disso é que um cientista assumidamente pós-moderno é capaz de conviver com classificações diferentes para seus grupos zoológicos ou botânicos sem considerar qualquer das propostas, necessariamente, errada. Muito pelo contrário, essa multiplicação de pequenas narrativas é de grande importância por prover o estudioso com um repertório de ferramentas amplo para entender o mundo. Para cada pergunta que o cientista faz ao mundo, ele usará o modelo ou o sistema que melhor lhe convier.

Caso fôssemos pintores, ter vários catálogos de cor à disposição para entender os matizes do mundo seria, sem dúvida, uma sorte. Da mesma forma, para os físicos, ter a teoria da relatividade e a mecânica quântica à disposição ajuda a resolver problemas tanto no universo macro quanto no micro. Para cada universo escolhido, um modelo.

Assim, pode-se dizer que a busca por alcançar a verdade na pós-modernidade seria algo como uma escalada na qual a meta é a paisagem do cume da montanha. Em tese, cada alpinista pode escalar a montanha colocando a mão e o pé, alternadamente, em uma combinação de fendas única, onde há infinitas possibilidades. Acontece que, como sempre há alguém que escala o paredão primeiro, será ela ou ele a fincar os ganchos que serão usados, em seguida, pelos demais alpinistas. Isso não impede que outros alpinistas resolvam criar outro caminho e fincar novos ganchos.

Mas essa liberdade carrega algumas armadilhas. Entender cientistas que nunca defendem que têm a verdade nas mãos e uma estrutura de saber que se admite representação mais que verdade não é para qualquer um. Mesmo cientistas experientes têm dificuldade em conviver com múltiplas narrativas e a história acabou mostrando problemas ainda mais graves ligados a esse desconforto.

Dois dos efeitos indesejáveis mais comuns relacionados ao mau entendimento da proliferação de narrativas são o niilismo e o negacionismo. No primeiro caso, o indivíduo se perde cada vez mais do real e, sem saber como escolher entre as narrativas, passa a acreditar que nada mais faz sentido. Esse processo é um forte aliado da chamada hiper-realidade, uma espécie de fantasia que nos leva a viver uma vida de ilusões, fetichismo e consumismo (conceito desenvolvido pelo filósofo Jean Baudrillard e abordado por filmes como “American Psycho”, “Matrix” e “Ela”). Nesse mundo, a cópia pode se tornar mais perfeita a nossos olhos do que a realidade, mesmo sem ter os principais atributos do real, como pode ser visto na paixão de Theodore (Joaquin Phoenix) por um sistema operacional que simula uma dedicada e atenciosa mulher no filme “Ela”.

No segundo caso, esse terreno pantanoso das narrativas também propicia o surgimento do chamado negacionismo. Este pode ser definido como a negação das narrativas científicas com base em ignorância ou mera conveniência. Há então aqueles que simplesmente ignoram o conhecimento científico e aqueles que, com fins políticos, os manipulam. De uma forma ou de outra, esse processo resulta em aberrações sociais como a disseminação da crença de que a terra seja plana, a negação do Holocausto, do aquecimento global, da teoria da evolução. Mais recentemente, resulta no movimento antivacina, na negação da pandemia causada pelo SARS-COV2 e na negação das queimadas em curso no país.

Nesse sentido, muito interessante é o argumento último usado por políticos negacionistas que afirmam que cientistas agem com fins políticos. Assim, estabelece-se a surreal inversão onde se acredita em cientistas desonestos que fazem política e políticos honestos que fazem ciência, crença só visualizável em uma sociedade distópica e propositalmente desinformada.

Entretanto, o fato é que a existência de múltiplas narrativas não implica, necessariamente, nesse caos. Em um cenário onde o cidadão disponha das ferramentas intelectuais apropriadas, esse múltiplo repertório de possibilidades de entendimento do mundo pode ser bom, como o é no metafórico exemplo da montanha. A comunidade científica é perfeitamente capaz de apontar, dentre as narrativas existentes, aquelas que são narrativas válidas e aquelas não científicas ou criadas com fins outros que não o conhecimento. Da mesma forma, é possível distinguir, dentre as científicas, aquelas que constituem hipóteses mais robustas, verificáveis, falseáveis, etc. Os melhores cientistas para isso são aqueles que se dedicam à pesquisa básica, ou mesmo à filosofia da ciência. Restaria, somente, cair a ficha do cidadão sobre a necessidade de se acreditar mais nos cientistas que nos políticos quando o assunto for ciência.

As narrativas científicas orbitam em torno do real, de onde virão as evidências que nos farão definir quais estão mais perto da verdade. Essas evidências, tais quais as milhões que queimaram no incêndio do Museu Nacional, constituem peças fundamentais em nossa relação com o universo. Em suma, os acervos museológicos tornam verificáveis nossas hipóteses sobre o mundo e, por isso, conferem cientificidade a elas. Sem esses documentos da história e de nossos ambientes não haveria quaisquer garantias de que as gerações futuras distinguiriam, minimamente, entre ficção e realidade, ou que não teriam mais apreço por dragões, elfos e pokemons do que por dinossauros, tigres e coalas.

Após o incêndio no Museu Nacional, uma querida amiga me procurou aflita para perguntar se o crânio da “Luzia” (nome dado à humana mais antiga encontrada na América do Sul) havia sido copiado antes de ser queimado pelo incêndio. Diante do alívio dela ao saber que sim, que poderíamos produzir facilmente cópias 3D daquele esqueleto, eu senti um forte desconforto intelectual.

De certa forma, em tempos de modernidade líquida, inteligência artificial e explosão de narrativas, esses museus e a própria ciência básica funcionam como âncoras, por nos permitirem manter contato com o mundo real. Não necessariamente, entretanto, o mundo hiper-real, ou seja, aquele criado pelo próprio ser humano e imposto pela sociedade de consumo, deseja que tenhamos essa opção de lastro. Caberá a nós, então, daqui para a frente, refletir sobre a importância do real e lutar pela conservação de nossa história ou correremos, nós mesmos, o risco de deixar de existir.