Na imagem, a compositora Chiquinha Gonzaga

Por meio da luta feminista, a sociedade vem se conscientizando cada vez mais sobre o silenciamento imposto às mulheres ao longo da História, nos mais diversos aspectos de suas vidas. No momento atual, parece haver maior compreensão sobre a urgência em pautar as demandas femininas – em toda a diversidade que o termo abrange – e impulsionar suas expressões, seja qual for a área de atuação. No entanto, apesar desse crescente esforço e do fortalecimento das redes de apoio, o caminho até a igualdade é árduo e determinadas barreiras ainda parecem intransponíveis.

O mundo da música não é impermeável aos efeitos da cultura patriarcal – machista e profundamente desigual em sua natureza. Assim como em outras esferas, o mercado da música reflete, de maneira grave, as questões sistêmicas que as mulheres precisam enfrentar na sociedade como um todo. Embora pesquisas amostrais como a PNAD/IBGE (2013-2018) nos permitam afirmar que, ao longo da última década, o número de mulheres profissionalmente inseridas no campo da música está em ascensão, também é verdade que a valorização e a visibilidade a que têm direito ainda não fazem parte da realidade.

É importante compreender que quando se fala de música como campo de atuação profissional nos referimos a um leque amplo de atividades que incluem não apenas a composição e a performance vocal ou instrumental, mas também a pesquisa, a educação, a regência, a produção, a técnica audiovisual, a curadoria de festivais, a elaboração de editais e a direção de espaços voltados a apresentações. Com isso, qual é o cenário que as profissionais da música encontram? Desde Chiquinha Gonzaga, o que realmente mudou?

Harue Tanaka, pianista e professora da Universidade Federal da Paraíba, considera que estamos diante de um “patriarcado musical”, e sua percepção não é desprovida de evidências. Pesquisas brasileiras realizadas pela DATA SIM (Semana Internacional da Música), pela UBC-União Brasileira de Compositores e pelo Selo SESC, entre 2018 e 2019, mostram uma realidade alarmante: na lista da UBC, dos 100 associados com maior arrecadação, apenas nove eram mulheres; somente 20% das atrações em festivais brasileiros são das mulheres; 84% das mulheres entrevistadas afirmam que já foram discriminadas; 49% citam o assédio sexual como a principal dificuldade do ambiente de trabalho; 73% trabalham mais do que a jornada semanal (sem considerar o acúmulo das funções domésticas) (1). Em maior detalhe, vemos que 62% são solteiras ou não têm filhos; 60% têm entre 19 e 35 anos; 71% atuam na região Sudeste; 78% são cis-gênero e brancas – o que nos leva a concluir que o espaço diminuto reservado às mulheres na música é voltado a profissionais jovens e brancas, concentradas em uma única região do país.

Esse último dado reforça o quanto a música reflete o racismo estrutural que permeia nossa sociedade e revela que, na música, o abismo também é enorme. A violinista Taís Soares, integrante da Orquestra Sinfônica da UFF, Mestre em Música pela UFRJ e idealizadora da série Chá da Preta (2), na qual destaca o trabalho artístico de instrumentistas negras, sugere, em primeiro lugar, um olhar sobre o número de homens negros trabalhando no mercado da música. Diante de uma porcentagem francamente reduzida, a presença da mulher negra é ainda menor.

“Em um país onde um jovem negro é morto a cada 23 minutos, como esperar que exista representatividade negra e feminina nos espaços de música? São dados inaceitáveis. É preciso que esse assunto esteja em pauta sempre, que não seja apenas uma moda que surgiu agora, durante a pandemia”. Taís exerce a maior parte de suas atividades no meio da música de concerto, em orquestras e formações camerísticas. Nessa esfera, a desigualdade entre homens e mulheres é historicamente notável, com a presença feminina sendo uma conquista ainda recente.

A título de exemplo, o que nos vem à mente quando pensamos nos cargos de maestro? Certamente, essa imagem estará apoiada no fato de que no Brasil, apesar do número crescente de mulheres que se formam como maestras, poucas conseguem um posto de liderança ou convites regulares para atuar diante das principais orquestras do País.

A quase total ausência de mulheres compositoras nos programas dessas orquestras é mais um alerta para o silenciamento e para a limitação da experiência artística não só das mulheres, mas de todo o público. A flautista e pesquisadora Thaís Fernandes nos lembra que reflexões e conceitos propostos por pensadoras e feministas negras, como Djamila Ribeiro e Lélia Gonzalez, como o privilégio, o poder e lugar de fala, vêm à tona quando as criações e os conhecimentos femininos são legados ao patamar mais baixo da hierarquia epistêmica. Mais uma vez, o recorte racial é indispensável para compreender e enfrentar o problema.

“Nas lives com as mulheres artistas pretas, a ideia é termos mais um lugar que enalteça nossa raça, mostrando nossa história de vida, nossa arte, nossa música e nossos conceitos de mulheres negras! Penso em mais um local de fala, de cultura e de como nos posicionarmos perante os obstáculos do racismo e do preconceito”, comenta Taís Soares sobre o projeto Chá da Preta, que vê seu alcance de público crescer a cada semana.

A ideia de que existem poucas mulheres na música é fruto dessa invisibilidade não ocasional. Sobram-nos profissionais talentosas, perseverantes e altamente qualificadas; o que nos falta é incorporação de medidas sólidas que proporcionem oportunidades iguais, respeito e valorização – intelectual e financeira. Então, o que é possível ser feito? Como as mulheres têm reagido?

Em todas as vertentes da música, iniciativas que chamam atenção incluem a criação de grupos, organizações, coletivos, festivais e projetos compostos e conduzidos exclusivamente por mulheres. Cito alguns exemplos apenas como referência: Sonora Festival Internacional, Meninas do Brasil Music, Movimento das Mulheres Sambistas, Girls Rock Camp Brasil, Escuta as Minas Spotify, Women in Music Brasil, Jazz das Minas, Orquestra Sinfônica de Mulheres do Rio de Janeiro, Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop, Feminaria Musical e o Simpósio Internacional de Mulheres Regentes. O legado desses projetos para as gerações futuras, em termos artísticos e representativos, é potente, mas é preciso mais.

Outras ações consideradas importantes pelas mulheres que participaram das pesquisas são a promoção de cotas em todas as instâncias do mercado da música e o voto em mulheres atentas à causa feminista, com todas as suas nuances e demandas específicas. No entanto, essas ações necessitam do engajamento dos homens e de toda a sociedade. Não se trata de mera disputa e não existe a intenção de fazer com que homens se sintam diminuídos. A luta é para que se compreenda a condição historicamente imposta às mulheres e para que elas possam ocupar os espaços que desejam de forma igualitária.

Não basta que o tema esteja em pauta, é preciso ação efetiva para transformar. A conscientização, o empoderamento feminino e a defesa, na prática, dos direitos iguais, garantidos pela Constituição Federal, devem ser compromissos de todos, em prol da democracia e de uma experiência humana plena.

Notas: (1) A PNAD-Contínua, do IBGE, mostrou que, no ano de 2017, mulheres dedicaram a média de 21 horas semanais em atividades domésticas, quase 50% a mais do que os homens, que dedicaram 11h semanais (Fonte: PNAD-Cont. 2017/IBGE). (2) Ver em www.instagram.com/tv/CCUKh2zp6wW/