A realidade está nos olhos de quem vê, dizia o pôster amarelado na parede do bar. E a realidade daquele lugar era horrível de se ver. Para os olhos, ar decrépito. Para as narinas, ar fedido. Prateleiras altas exibiam garrafas empoeiradas de catuaba, conhaque e sidra desalinhadas e com grandes intervalos entre elas, como uma boca meio banguela. A parede do fundo era guarnecida por um paredão de engradados e cascos vazios. Cerveja parecia a única coisa que não faltava por ali.

João entrou com fome. Pouco dinheiro porque era fim do mês. Pouca alternativa porque a região era assim mesmo. O atendente carrancudo, de barba rala e lábios tortos, secava garrafas de cerveja com uma pequena toalha encardida. A mesma que usava para limpar os pratos e todo o resto. Uma pequena estufa abrigava coloridos ovos cozidos e pedaços de linguiça afogados em espessa gordura alaranjada e brilhante. Acabou pedindo uma lata de salsichas.

Comeu enquanto olhava uma mulher de idade indefinida revirando o lixo para catar latinhas de alumínio e papelão. Ela reparou. Pediu que lhe pagasse um pão com salame. João concordou. Por pena e respeito ao mesmo tempo. Virou-se para pedir o sanduíche à moça triste que operava a chapa e antes que pudesse abrir a boca a catadora gritou com voz estridente:

– Michele! Me vê um pão com salame! O moço aí vai pagar. Somos vizinhas – Disse a João como se lhe devesse alguma explicação.

Lembrou-se do pôster amarelado. Uma, barista. De carteira assinada e avental que foi uniforme um dia. Outra, catadora de latas em latas de lixo. Parecem realidades tão distantes, mas só para os olhos de quem vê de longe. De perto, são iguais na miséria e na indignidade de uma vida na qual o trabalho não traz dignidade.

A catadora comeria em paz seu pão com salame e refrigerante – um bônus ofertado por João -, não fosse pela pequena multidão que acompanhava um sujeito engravatado que andava rápido acenando, cumprimentando e sorrindo largamente.

– Quem é?

– Vereador Aristides. Candidato a prefeito.

O Vereador curvou em direção ao bar. Alguns sujeitos de olhos arregalados e gesticulantes como organizadores de desfile de escola de samba se precipitaram na frente para abrir caminho. O cortejo de curiosos e crianças animadas com o doutor importante ficou do lado de fora.

– Minha querida! Um pão com mortadela para o futuro prefeito! Pediu um deles como forçada intimidade.

Outro, determinava com impaciência a uma pequena equipe que cadeiras, mesas e janelas fossem rearranjadas, como se o bar lhe pertencesse. Sanduíche pronto, entre sorrisos e poses, o vereador era fotografado – Agora, dá uma mordida! – Só fingiu, com a ponta do sanduíche enfiada na boca.

Em tom de discurso, disse para os amontoados do lado de fora que vai mudar aquela realidade, porque a conhece com os próprios olhos. Seguiu a caminhada levando o barulho da gente e deixando o sanduíche babado no lixo.

Mal o importante vereador saiu, a catadora entrou e pegou na lixeira o sanduíche rejeitado – Hoje eu janto! – Disse abrindo um sorriso desdentado como as prateleiras do Bar Brasil.

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Ilustração: Mihai Cauli

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