50 anos do golpe militar no Chile
Nesta semana de 11 de setembro, centenas, talvez milhares de estrangeiros estão ao Chile para descomemorar os 50 anos do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende e encerrou, com o sangue de mais de 40 mil pessoas – muitas delas exiladas -, os 1.042 dias da inédita experiência de um governo autodeclarado marxista, eleito em pleito democrático. Cerca de cem brasileiros, dos mais de quatro mil que lá viveram os venturosos dias da Unidade Popular, estão caminhando pela calles nuevamente de lo que fué Santiago ensangrentada, junto com uruguaios, argentinos, bolivianos, peruanos, principais grupos de exilados no país andino nos anos 70.
Está sendo um desafio emocional o intenso programa de atividades: o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos; o Estádio Nacional e o ginásio Víctor Jara – transformados em campos de concentração, tortura e execuções já no segundo dia do golpe -; o Cemitério Geral, onde estão os restos do presidente Salvador Allende, do poeta Pablo Neruda, do próprio Víctor Jara, do estudante gaúcho Nilton da Rosa da Silva; o palácio de La Moneda, bombardeado e incendiado por caças militares, tanques e canhões na manhã de 11/09/73. Se as pernas aguentarem, ainda participarão, mesmo que por algum trecho, da longa caminhada pela avenida Recoleta até o Cemitério Geral, onde se espera um milhão de pessoas, o que não é raro em Santiago. Em 1970 e 1973, houve duas manifestações de apoiadores de Allende com mais de 1 milhão de pessoas, num país que então tinha menos de 10 milhões de habitantes, e em 2019, em protesto contra o governo de Sebastián Piñera.
Gerações de exilados
Escrevi “se as pernas aguentarem” porque os mais jovens já vão a meio caminho dos 80 anos. Desde o golpe de 1964, o Chile foi receptivo para brasileiros que buscaram refúgio em diferentes levas de exilados. O governo de direita de Jorge Alessandri acolheu os primeiros, chegados diretamente ou após passagem pelo Uruguai, México, Argélia. Foram os cassados e expurgados que integraram o governo de João Goulart ou de governadores aliados, parlamentares, governadores e prefeitos, funcionários de carreira em ministérios, institutos públicos e universidades. A segunda leva, no governo de centro direita de Eduardo Frei, foi dos expurgados pelo AI-5.
Vítimas em 64 e 68, lá trabalharam o ex-ministro Almino Afonso, os professores André Gunder Frank,Darcy Ribeiro,Ernani Maria Fiori, FernandoHenrique Cardoso, Francisco Weffort, José Serra, Marco Aurélio Garcia, Maria Conceição Tavares, Mário Pedrosa, Paulo Freire, Paulo Renato de Souza, Ruth Cardoso, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, o poeta Thiago de Melo.
Logo em seguida, já com Allende, chegaram os jovens do proscrito movimento estudantil e os sobreviventes da luta armada do final dos anos 60, que saltaram as fronteiras ou foram salvos da prisão e da morte em troca de embaixadores sequestrados pelo que havia sobrado de suas organizações. Com o governo da Unidade Popular, o Chile ainda imantou centenas de jovens de esquerda do continente, da Europa e até dos Estados Unidos que quiseram viver os excitantes anos da “via chilena para o socialismo”.
Afora a primeira leva de exilados que chegou ao Chile, já na casa dos 40 anos de idade, consagrados em suas profissões e que rapidamente se empregaram em universidades ou organismos internacionais, os demais brasileiros lá aportaram mal passados dos 20 anos. E crianças, muitas crianças, várias delas nascidas lá, levadas na fuga dos pais, ou levadas por avós depois que os pais recuperaram a liberdade. Atropelados pelo golpe de 1964 ainda na adolescência, grande parte dos exilados brasileiros foi conhecer democracia e liberdade pela primeira vez lá, ainda que por breve tempo. Foram os dias mais felizes e os dias mais assustadores daquela efervescente década. No golpe chileno, muitos, muitos, foram presos e torturados; oito brasileiros foram assassinados. Ainda assim, muitíssimos dos mais de 60 que entrevistei ou li suas memórias afirmaram que os dias, meses e anos que viveram no Chile antes do golpe de Estado foram os melhores de sua vida. Sonhando, lutando, vivendo, amando.
Viva Chile, mierda!
No início do ano, dois ex-exilados criaram um grupo no whatsapp para articular quem estava cogitando ir ao país neste setembro. O grupo chegou a quase 500 participantes, gerou uma programação que contemplasse suas memórias, confeccionou camisetas com logomarca própria, mobilizou-se para a troca do nome de uma rua em Santiago – o do embaixador do Brasil à época do golpe, o ultra direitista e ativo conspirador Antônio Cândido Câmara Canto, pelo nome do médico humanitário Otto Brockes – e pela fixação de uma placa na embaixada do Brasil em agradecimento ao povo chileno que os acolheu.
Mas muitos não se encorajaram a voltar ao país tanto de sua felicidade quanto do suplício pessoal e de parentes e amigos. Há quem sequer queira falar sobre aquele período de sua vida. Alguns estiveram lá em anos anteriores e não tiveram coragem de ver os prédios onde viveram. Menos ainda, o Estádio Chile e o Estádio Nacional, onde foram torturados por militares brasileiros em território estrangeiro. Outros, ao contrário, desejam confrontar-se com esses mesmos sentimentos.
A criação do grupo Viva Chile! possibilitou reencontro de pessoas que não se comunicavam há 50 anos. Nas primeiras semanas queriam saber notícias de fulano e beltrano, de muitos só vieram a saber o nome verdadeiro agora. Logo começaram a jorrar as memórias dos dias felizes, festas, futebol na comunidade, separações e novos relacionamentos, a generosidade de embaixadores que lhes deram asilo, a coragem de companheiros com alguma imunidade diplomática que ainda ficaram por dias rodando de carro pela cidade em busca de companheiros e de desconhecidos para levá-los para a proteção das embaixadas.
Crescimento direitista
O Chile de 1970-73 rachou de cima a baixo, num grau de ódio que dividiu irreconciliavelmente a sociedade e expôs o tamanho de seu sentimento direitista. Se quase todos os exilados se sentiram acolhidos e até protegidos por vizinhos de bairro, colegas de faculdade ou trabalho desde a chegada, nos dias após o golpe, sentiram o peso do fascismo em sua rua. A maioria foi denunciada aos carabineros e militares justamente por vizinhos, animados pela intensa campanha contra os “estrangeiros que vieram destruir nossa pátria e matar chefes de família” e pelo incentivo a que ficassem com os bens dos que fossem presos. Os que foram liberados e tentaram voltar a suas moradias as encontraram totalmente esvaziadas, depenadas pelos militares, que chegavam de caminhão, e por vizinhos. No apartamento em que viviam as famílias dos gaúchos Raul Ellwanger e Roberto Metzger não sobrou nada, nem violão nem berço do bebê.
Os que irão agora não encontrarão aquele seu Chile. Nos anos de ditadura o país foi o laboratório mundial do neoliberalismo. Os limites geográficos da capital duplicaram, subiram pela pré-cordilheira, viníferas que ficavam nos limites da cidade foram envolvidas por novos bairros. As universidades públicas em que estudaram, foram desmembradas e privatizadas, a saúde, a previdência social, as aposentadorias foram precarizadas. O ascenso social de 2019 não foi capaz de assegurar o texto progressista na nova Constituição e as causas identitárias são rejeitadas por uma população com tradição anti-indígena. Mais: em maio passado, 36% da população do país disse em pesquisa que as forças armadas “tinham razão” em dar o golpe de Estado, um aumento de 20% em uma década.
Mientras tanto, o país e a cidade continuam belos e ainda servem cazuela no mercado central.
Chilenos gentis são muito gentis. E quem teve a vida salva por um deles sabe muito de sua bondade e coragem. Há que agradecer-lhes. Por suas próprias memórias e por gratidão esses quase 100 ex-exilados por estes dias embarcarão em uma viagem em que o passado é presente.
E Allende, bem, el Chicho é um dos mitos mais amados da esquerda mundial. Mesmo que só ele acreditasse que seus generais eram democratas. (Publicado no Sul 21)
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Ilustração: Mihai Cauli
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