Certa pergunta mantém uma viva atualidade: a suposta neutralidade da ciência reivindicada de forma especial por especialistas econômicos encobre a defesa de profundos interesses de classe? A resposta afirmativa a essa questão é a base para o livro (MATTEI, 2023, p.25) A Ordem do Capital, da professora Clara Mattei. A tese, não integralmente nova – a ver, por exemplo, O Neoliberalismo: história e importância, de David Harvey –, é apresentada com convincente clareza pela pesquisadora, a partir de dois estudos de caso, a saber, as conduções da política econômica da Grã-Bretanha e da Itália nos anos 20 do século passado.
O título já comporta uma ambiguidade de significados: tanto podemos compreender a ordem no sentido de “a organização do capital” como no de o “ditame do capital”. O argumento que se coloca é que, durante a Primeira Guerra Mundial, os Estados em conflito constataram uma ineficiência na alocação de recursos fundamentais para o esforço de guerra por parte dos agentes privados. Assim sendo, os governos nacionais chamaram a si a tarefa de coordenação da economia – um cenário batizado de “economia de guerra” –, demonstrando, ao contrário, uma maior capacidade de gestão eficiente dos recursos materiais e humanos voltada à vitória militar. Após o término da guerra, a esse descrédito parcial dos mecanismos de mercado veio a se somar um ambiente social geral mesclado de comoção e efervescência política, acentuado pelas graves condições sociais e pelo reconhecimento do “sacrifício patriótico” das populações envolvidas na catástrofe bélica. Esse ambiente produziu não somente uma série de políticas públicas voltadas ao bem-estar social, mas uma contestação mais ampla da organização socioeconômica então vigente.
Segundo a autora, todo esse contexto sociopolítico teria sido agudamente percebido pelas elites dominantes como uma forte transferência de riqueza até então em seu poder para as classes proletárias e, mais ainda, como uma séria ameaça à própria ordem liberal-capitalista estabelecida. O “remédio” a ser aplicado contra esse ambiente contestatório consistiu então, basicamente, na aplicação de uma pretensa ortodoxia econômica, manifesta em políticas deflacionárias e de severa contenção monetária, que provocaram enorme aumento do desemprego e, consequentemente, o disciplinamento das reivindicações das classes trabalhadoras. Criou-se aquilo que Marx já apontava como uma das estratégias básicas do capitalismo: a constituição de um “exército de reserva” de trabalhadores a pressionar para baixo os níveis salariais e o rendimento do trabalho.
Entretanto, a aplicação dessa receita recessiva e antissocial exigia uma reversão dos ventos políticos efemeramente estabelecidos nos anos imediatamente após a Guerra. Nesse ponto, segundo a autora, deu-se a batalha ideológica, com a intervenção da “ciência econômica neutra”, cujos princípios foram reafirmados em duas conferências internacionais, realizadas em Bruxelas (1919) e Gênova (1922). Os principais formuladores de política econômica europeus compareceram a esses eventos, dos quais se extraiu um consenso em torno de alguns dogmas, como, por exemplo, a austeridade fiscal – malignidade em si dos déficits orçamentários, com a necessidade de cortes de gastos sociais, considerados não só excessivos como moralmente prejudiciais, a rápida retomada do padrão-ouro – com a imposição de drásticas medidas deflacionárias – e a exigência de se blindarem as políticas monetárias restritivas “virtuosas” de pressões políticas, blindagem essa garantida pela independência dos bancos centrais. Nas palavras da autora, o “consenso implicava um esforço consciente para ‘despertar’ o público para a necessidade de reformas que favorecessem a estabilização econômica, ainda que fossem dolorosas”(MATTEI, 2023, p.25), mas, na verdade, representava uma ação, às vezes cruamente verbalizada, de contra-atacar as demandas políticas da classe trabalhadora por meio da imposição de uma recessão e de um desemprego severos, transferindo “a riqueza e os recursos nacionais para as classes altas, que, insistiam os especialistas econômicos, eram as únicas capazes de poupar e investir.” Todas essas ações eram fundamentadas em argumentos “científicos”, provindos de uma ciência econômica que supostamente estabeleceria “verdades sobre o capitalismo isentas de juízo de valor.”
Chama a atenção, em toda essa discussão, a reprodução no mundo contemporâneo do mesmo discurso tecnocrático. Os mantras da austeridade fiscal, da virtuosidade monetária e da independência do banco central contra o “populismo econômico” são repetidos à exaustão, como pretensos frutos incontestes da sabedoria científica, e com os mesmos resultados práticos do aumento na concentração mundial da renda. A política é vista como uma intrusa indesejável no universo gerencial, representando interesses indisciplinados de uma população que não compreende a lógica dura, porém inexorável, das leis econômicas. Os especialistas nos salvarão de nós mesmos!
A pergunta é: até quando o frágil pacto civilizatório duramente atingido pelas sociedades modernas sobreviverá a isso? Novamente invocando Marx, o fascismo parece ser o espectro que nos ronda…
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Ilustração: Mihai Cauli
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