Conchave no governo
A fumaça esbranquiçada dominava o ambiente. Ninguém ousou abrir a janela naquele dia tão frio e a fumaça dos cigarros, charutos e do cachimbo de Dr. Orozimbo não eram mais sufocantes do que os humores daquela reunião.
O partido precisava tomar uma posição e isto era tremendamente desconfortável para todos eles que ganharam tanto, justamente por não tomar posições claras sobre nada. Na verdade, sempre tomaram a posição deles mesmos, mas justificadas ora como interesse do governo, ora da sociedade, ora da decência, bons valores, Jesus e do que mais lhes servissem para encobrir de emoções públicas suas ambições privadas.
“Eu não vou abrir mão do ministério. Não posso! Tenho acordos a cumprir e, vocês sabem o quanto eu sou de cumprir meus acordos”, disse Dr. Fernandez alternando baforadas de charuto e goles de uísque sem gelo.
Com um balançar da cabeça e os músculos da face franzidos, Dr. Orozimbo fez entender que concordava em parte com o colega. “Hoje, há algo a se perder se deixarmos de vez o governo, mas há ganhos no futuro, meu amigo. E você sabe que, seja como for, não será deixado de lado por nós. Estamos e estaremos juntos, como sempre”.
Dr. Cornélio sorriu com ironia. Sabia bem que as coisas não eram assim. Quando descobriram seus esquemas, só foi defendido por cúmplices que, para sua sorte, não eram poucos. Escapou das piores punições e ainda estava no jogo, mas não sem as cicatrizes que jurou jamais esquecer. “Mas o momento não é bom para o governo. Nada bom. Acho que já não temos mais nada a aproveitar ficando no governo. Melhor ficarmos soltos de vez para ganhar alguma coisa atacando o governo. É hora de sermos pedra e não vidraça!”.
“Mas, Cornélio, e quando é que estar no governo impediu a mim ou a você de tacar pedra? Em quantos projetos do governo nós votamos a favor? Sabe, acho que ninguém liga para esse negócio do partido fazer ou não fazer parte da base. Fernandez é ministro. ELE é ministro. Não o partido. Ninguém nem sabe qual é o partido dele. Se alguém aqui vira vidraça estando no governo, é ele. E só ele.”. Atalhou o senador Olivares Saldanha.
Dr. Fernandez não gostou do tom. Sentiu-se abandonado naquele momento. Dr. Cornélio deixou escapar, baixinho: “sabia…”. Dr. Orozimbo estava gostando do rumo da conversa e reabasteceu a fornalha do cachimbo.
“Olha, se a gente for tentar chegar a um consenso aqui, vai passar a noite e não vamos conseguir. E todo mundo está lá fora esperando. Acho melhor votarmos. Vamos pela maioria”, concluiu o senador Olivares Saldanha. “De jeito nenhum!”, quase gritou Dr. Fernandez, que como todos ali, não tinha apreço por procedimentos, mas por resultados, e democracia só é bom valor quando o resultado for bom para ele. Não lhe parecia ser o caso.
Continuaram noite adentro. Já era dia quando anunciaram, todos juntos, a decisão. Abraçados, como uma equipe de futebol, postaram atrás de Dr. Orozimbo, que de olho fixo na lente da câmera do celular que transmitia ao vivo seu discurso, rezou, falou de Jesus, justiça, vontade popular, ética, amizade e todos os bons valores dos quais se lembrou naquele momento. Justificou a decisão como sendo resultado de profunda reflexão moral. Um espetáculo de oratória vazia e cinismo lapidado ao longo dos vários mandatos.
Seus trejeitos e palavrório aleatório chamavam tanto à atenção de quem assistia, que mal se podia perceber, ao fundo, o olho arroxeado do Dr. Fernandez e a gota de sangue que se precipitava do nariz do senador Olivares Saldanha.
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Ilustração: Mihai Cauli
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