É uma coisa inacreditável. Enquanto a Covid-19 se alastra por todo o país, infectando e ceifando dezenas de milhares de vidas, ao mesmo tempo em que voluntários e profissionais, especialmente da área da saúde, estão se arriscando seriamente e muitos deles se tornando vítimas fatais por sua dedicação e pelo amor ao próximo, parte das autoridades das esferas municipal, estadual e federal, tratam a crise sanitária como uma oportunidade de se locupletar. Os dicionários não registram um adjetivo que dê conta de qualificá-los.

O crime que cometem não é apenas de corrupção. É muito mais grave. À medida que desviam recursos, que compram insumos e equipamentos por preços superfaturados, estão, por exemplo, deixando os hospitais sem o número necessário de respiradores artificiais. “Eu não consigo respirar”, frase do norte-americano George Floyd que se tornou slogan da luta antirracista, também poderia ser o símbolo da luta de milhares de brasileiros que são vítimas indefesas do novo coronavírus e da velha corrupção.

O pulo do gato dessas autoridades é a legislação autorizar a dispensa de licitação nos casos de emergência ou calamidade pública. As compras de equipamentos e serviços podem ser feitas diretamente, escolhendo-se o fornecedor. Não se exige sequer uma tomada de preços. É aí que muitos deitam e rolam na maracutaia. Não são casos “normais” de corrupção. Trata-se de roubalheira de recursos que faltam nos hospitais e que levam milhares de infectados à morte.

No Amazonas, por exemplo, 24 ventiladores pulmonares foram adquiridos pelo fornecedor por R$ 2,48 milhões, que os revendeu ao governo do Estado por R$ 2,98 milhões, um sobrepreço de R$ 500 mil. A legislação dispensa licitação nestas operações, mas supõe que seja escolhida uma empresa produtora deste tipo de equipamento. No entanto, a escolha do governo do Estado foi de uma – pasmem! – adega de vinhos. E ainda foi constatado que os respiradores não eram adequados.

Caso parecido é o do Rio de Janeiro, onde o governo do Estado, além de outras maracutaias, comprou 400 ventiladores mecânicos de uma loja… de informática. Como se não bastasse, foram entregues apenas 52 aparelhos e, mesmo assim, não recomendados para o tratamento da Covid-19.

Há outras semelhanças entre os dois Estados. No Rio, o dono da empresa, Maurício Fontoura, foi preso e o governador Wilson Witzel vai enfrentar processo de impeachment na Assembleia Legislativa. No Amazonas, o governador Wilson Lima, xará de Witzel, também terá que enfrentar processo de impeachment na respectiva Assembleia Legislativa. A secretária de Saúde foi presa e depois exonerada.

No Rio, foram constatadas diversas outras irregularidades. Por exemplo, dos sete hospitais de campanha que estariam prontos até o final de abril, só foram entregues dois; o TCE (Tribunal de Contas do Estado) exige que Edmar Santos, ex-secretário de Saúde, devolva R$ 36 milhões aos cofres públicos por irregularidades na contratação de empresas; o mesmo TCE suspende pagamentos do governo estadual à Organização Social Iabas, questiona custos de R$ 4,5 milhões mensais em tendas e denuncia a falta de capacidade técnica da entidade.

Esquemas semelhantes se sucedem em várias prefeituras e governos estaduais. O governo federal também tem de se explicar. Além de todos os estímulos a não obedecer às medidas de proteção e de deixar acéfalo o Ministério da Saúde, o ‘infectologista’ e ‘epidemiologista’ Jair Bolsonaro deu ordem, segundo o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, para aumentar a produção da cloroquina pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército, sem passar pela análise técnica da Anvisa. Trata-se de medida inédita na história da República, segundo Mandetta.

O TCU vai apurar a informação de que o Laboratório gastou seis vezes mais para adquirir o insumo da Índia. O órgão vai apurar também se houve gestão de risco com a decisão de aumentar em 100 vezes a produção do medicamento, mesmo sem a comprovação de que haveria benefícios para tratar a Covid-19.

O subprocurador do TCU, Lucas Rocha Furtado declarou que há “evidente ineficácia administrativa” que resultou em desperdício de recursos públicos. Furtado quer que seja apurada a responsabilidade direta do presidente da República. O Laboratório do Exército assinou pelo menos 18 contratos sem licitação, para ampliar a produção do medicamento.

Todos esses casos, como disse antes, são muito mais que corrupção. Os envolvidos deveriam ser responsabilizados, no mínimo, por genocídio “culposo”. Mas essa figura não existe na legislação porque supõe-se que todo genocídio decorra de determinação de matar em grande escala, o que tipificaria como crime doloso. No caso dos desvios na saúde, o objetivo, pelo menos da maioria, não era matar e sim assaltar os cofres públicos. O genocídio acontece como efeito colateral. Enquadrar os envolvidos apenas em crimes de corrupção é muito pouco, não dá conta da monstruosidade que estão cometendo.