Histórias de inverno na Alemanha e na Rússia

Ilustração: Mihai Cauli

No dia 22 de fevereiro de 1943, em Munique, no Sul da Alemanha, a temperatura estava vários graus abaixo de zero. Em janeiro do ano anterior, um inverno sem piedade havia punido a cidade fazendo os termômetros decaírem a menos 30 graus. Ainda que as temperaturas de 1942 não se repetissem agora, nas celas da prisão de Stadelheim no distrito de Giesing estava frio, gelado, quando amanheceu aquela segunda-feira.

Quando, às 7 da manhã de sábado, 20 de fevereiro, os ruídos metálicos vindos do corredor avisaram que a rotina diária dos que controlavam o edifício estava se iniciando, o espaço cerrado que a separava deles e a aproximava do fim era uma linha ininterrupta de horror de um período cuja origem ela não saberia localizar. A morte, no entanto, estava a poucos metros dali. Com o ardor que ainda lhe restava na alma (era onde) ela tentava concentrar seu desejo, devorando as últimas gotas da vida.

Não lhe importava mais nada que não fosse olhar para os perpetradores e tentar enxergar suas entranhas. Fosse como fosse. Aquilo lhe apertava o peito. E se não conseguisse? E se não fosse possível ver? E se eles não possuíssem alma como nós e todos os outros? Ou se, pelo contrário, fosse ela a portadora do grande vazio? Talvez a tivessem cegado ou, naquelas últimas horas, obliterado sua capacidade de ver. A atmosfera que enchia a minúscula cela da prisão de Stadelheim no distrito de Giesing estava ensombrecida, quase opaca. Além de tudo, por que lhe interessavam os perpetradores, aqueles que a capturaram como a um animal e que dali a pouco a executariam como a um inseto ou menos que isso, um nada?

E, no entanto, não. Para eles mesmos, seus carcereiros, era portadora natural de certos privilégios. Pertenciam à mesma estirpe, tinham o mesmo sangue. Por isso lhe dirigiram a palavra, ainda que para apenas transmitir o mais agudo desprezo. Enquanto caminhavam, um deles lhe havia dito:

– Agora entra, senta e espera. Não há com o que se preocupar, a lâmina desce rápido como um raio. Você verá.

Você verá, foi o que disseram, se referindo ao ato definitivo prestes a ser executado.

Por muito tempo esteve convencida de que os que pereceram na inominável desgraça já se tinham ido e o que, portanto, se podia fazer era prantear e rememorar, mas os perpetradores, esses continuavam vivos, gerações após gerações através dos séculos, aperfeiçoando seus métodos e vendo crescer o seu rancor.

“Era a mesma gangue que havia zombado de Cassandra em Troia e de Jeremias em Jerusalém,” como escreveu Stefan Zweig.

Quem poderia recriar as horas que separam a tarde da quinta-feira, 18 de fevereiro, e a noite na qual a lâmina da guilhotina foi liberada do engaste, dali a menos de quatro dias?

(A estudante de biologia e filosofia Sophie Scholl não tinha completado 22 anos de idade quando foi presa com seu irmão Hans, dois anos mais velho que ela, ao distribuir panfletos contra o regime nazista no pátio da Universidade onde estudavam. Foram traídos pela queda de alguns desses panfletos pelas escadarias do prédio e denunciados por um bedel. Os homens da Gestapo que os retiraram do edifício foram aplaudidos pelos colegas da faculdade.)

Dois Estados em um só corpo

O Estado que se ausenta e desaparece para que se movimentem livremente as forças do capital ou das grandes burocracias, se escondendo e se omitindo como se sequer existisse, torna-se gigantesco quando do que se trata é assegurar privilégios, assim como as fronteiras e os fabulosos ganhos das corporações. A verdade é que são dois os Estados habitando um só corpo: o espaço onde existimos é uma geografia partida ao meio e soldada a fogo.

Esse mesmo Estado que deveria se mostrar forte para fazer equilibrar a balança e garantir aos fracos os mais básicos dos direitos se encolhe e se torna mínimo, volta transfigurado em Leviatã quando do que se trata é controlar, vigiar e punir precisamente aqueles que necessitam de proteção.

Dona da violência, a máquina do Estado (a representação como força instituída da consciência e do desejo das sociedades e, ao mesmo tempo, um portento semiautônomo acima delas e hostil ao seu direito de existir em liberdade) opera para que todo aquele ou aquela que for demonizado perca imediatamente o direito de existir e seja lançado para a margem ou simplesmente eliminado.

A fileira de cadáveres

Tanto quanto Munique em fevereiro de 1943, Moscou na noite de 26 de janeiro de 1936 ostentava uma temperatura muitos graus abaixo de zero. O gelo e a neve que cobriam a paisagem projetavam no olhar uma atmosfera onírica, para muitos, a de um indescritível pesadelo. No monumental e, naquele momento, lotado Teatro Bolshoi se dava a apresentação da ópera Lady MacBeth do Distrito de Mitsensk de Dmitri Shostakovich. Composta em 1932, estreada dois anos depois no Teatro Mikhailovsky em Leningrado com enorme sucesso, repetida em seguida nos principais centros culturais da Europa, a peça foi inspirada numa novela de Nikolai Leskov de 1865, e conta “a história de uma dona de casa que deixa uma fileira de cadáveres em sua trajetória” – conta Alex Ross em O Resto é Ruído.

A distância entre o Kremlin e o Bolshoi costeando o rio que dá nome à cidade é de uns 3,7 quilômetros de carro. Esse é o trajeto corrente nos dias atuais. A pé dista apenas um quilômetro. Naturalmente, esse trajeto reservado aos pedestres pode ser utilizado por veículos se assim quiserem os que controlam as leis da cidade ou o poder do Estado. É assim agora, e assim era na primeira metade do século XX. Mas a verdade é que naquela noite do inverno de 1936, ninguém saberá dizer qual terá sido o caminho tomado pelo Packard V12 que conduzia Stalin.

Seja como for, o fato é que exatamente naquela noite, o Secretário-Geral decidiu deixar seu gabinete de trabalho para ir ao teatro assistir à peça de Shostakovich. Porque, sim, o Secretário-Geral apreciava a boa música, o que fazia parte da cultura do seu povo, e o Secretário-Geral era um homem do povo, com uma arraigada crença na mítica que formatava (para eles próprios) o mundo eslavo e o russo em particular, tanto quanto os czares, aliás, porque, sim, o Secretário-Geral era um homem genuinamente ligado às tradições da sua pátria – fosse por temperamento, hábito, conveniência, estreiteza de espírito e/ou horizontes, tudo isso ao mesmo tempo, ou fosse lá pelo que fosse.

Assim, permaneceu absorto e impassível durante os três primeiros atos. Mas antes que se iniciasse a quarta e derradeira parte, abandonou o camarote de volta ao Kremlin, ou rumo à dacha de Kuntsevo, a 15 quilômetros dali – sobre isso não há registros, não ao menos que saibamos.

Sete meses depois, no começo do outono daquele mesmo ano, o Secretário-Geral trocou o funcionário Yagoda pelo funcionário Yezhov no comando da Secretaria de Assuntos Internos. Na chefia da NKVD, o funcionário Yezhov dirigiu aquele que ficou conhecido como o grande expurgo. A NKVD recebeu, então, um orçamento extraordinário de 75 milhões de rublos e a partir dali “foram atribuídas cotas de prisões e execuções para cada região e república”. Como resultado, “entre o verão de 1937 e novembro de 1938 foram detidas cerca de 1,6 milhão de pessoas e executadas umas 700 mil” (Alexandra Popoff, Vasili Grossman y el Siglo Soviético).

A dona de casa do distrito de Mitsensk havia entrado em plena atividade, praticando com minúcia e destreza de mestre inigualável sua economia doméstica.

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