“Pornopopeia” e “Hollywood”: transgressão e zombaria com estilo e o domínio perfeito do idioma

Charles Bukowski e o paulistano Reinaldo Moraes têm muito em comum: a língua afiada, o deboche, a transgressão, a obscenidade verbal e a habilidade de provocar no leitor gargalhadas homéricas. E vão fundo nessa missão. São também ótimos contadores de histórias e, com sua linguagem bem coloquial, têm o domínio perfeito do idioma, o que lhes confere “a consistência de estilo que os separa dos aspirantes fajutos a escritor”, segundo avaliava Bukowski sobre aqueles que considerava realmente bons. Os protagonistas de seus livros – no caso de Buk, o alter ego – estão sempre envolvidos numa espiral de sexo, drogas e bebedeiras, vivem na base do improviso e se metem em todo tipo de encrenca. A dupla figura no topo da lista dos escritores denominados “malditos”.

Reinaldo Moraes (“Maior que o Mundo”, “O Cheirinho do Amor”) conquistou público e crítica com um romance quase épico, de matar de rir, chamado “Pornopopeia”. Finalista em 2009 dos prêmios São Paulo de Literatura e Portugal Telecom, é de longe seu livro mais cultuado. Já Bukowski, o “velho safado”, foi um poeta, contista e romancista muito badalado mundo afora. Nascido na Alemanha em 1920, mudou-se com a família para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Lá, além de beber feito um gambá, arrebanhou uma legião de fãs através de obras hilárias como “Hollywood”, “Pulp” e “Mulheres”. Neste primeiro Duo Literário, vou falar de dois livros que recomendo muito: “Pornopopeia” e “Hollywood”. Mas aviso desde já aos interessados: esqueçam o politicamente correto.

PORNOPOPEIA (2008) – REINALDO MORAES

Recebi a dica para ler “Pornopopeia” em 2011. O romance de Reinaldo Moraes me pegou de cara. Não apenas pelas gargalhadas em sequência que provoca. Nesta epopeia burlesca de 660 páginas (edição de bolso), recheada de zombarias e galhofas, além de haicais, trocadilhos e neologismos desavergonhados, Moraes domina o idioma como poucos. E escreve da maneira como a gente fala, algo raro num escritor. É como se o autor estivesse nos contando a história pessoalmente, como se ouvíssemos sua voz durante a leitura. Um livro único na literatura contemporânea, embora, como mencionei acima, não seja nem um pouco politicamente correto.

Com um texto fluido e inquieto, sempre em movimento, “Pornopopeia” é narrado em primeira pessoa pelo protagonista. Zeca é uma cineasta paulistano decadente de 40 e poucos anos com um único longa no currículo que passou despercebido pelo público e pela crítica. Para sobreviver, leva a vida produzindo filmes institucionais. O trabalho, porém, é sempre adiado por conta do pó, da bebida e da putaria. Por isso está sempre sem grana e é praticamente sustentado pelo cunhado rico, que banca sua produtora, pela mulher e por amigos. Imoral e individualista, Zeca não tem grandes ambições. Mas mantém um apetite por drogas e sexo fácil e descartável que beira a voracidade.

Assim, Zeca arruma um job sobre embutidos de frango. Grana fácil. Só sentar a bunda e escrever. Mas nada é fácil para Zeca. Sem saber por onde começar, ele acaba se metendo em uma jornada regada a álcool, sexo, cocaína e confusões em série pelos mais recônditos cantos de uma Pauliceia verdadeiramente desvairada. Isso inclui a participação num ritual brâmane – ou “Surubrâmane” –, uma noitada sem fim num puteiro e uma encrenca da pesada com traficantes de drogas. Na segunda parte do livro, com a polícia na cola, ele foge para uma pequena cidade no litoral paulista. Longe do pó, só nos gorós e baseados, Zeca desacelera. Mas a necessidade de sexo faz com que se meta em novas e intermináveis confusões.

HOLLYWOOD (1989) – CHARLES BUKOWSKI

Se em “Pornopopeia” o anti-herói é um cineasta decadente, em “Hollywood” é um escritor que tem aversão à cinema e à pompa hollywoodiana. Henry “Hank” Chinaski leva uma vida tranquila com a mulher, bebe o dia todo, não perde uma corrida de cavalos e escreve nas horas vagas. O que mais poderia querer? No entanto, acaba envolvido na produção de um longa-metragem. E não pensou duas vezes ao aceitar o convite para criar o roteiro. Afinal, em época de vacas magras, uma bolada de 20 mil dólares não seria de se jogar fora. Mas tratou de deixar bem claro que só toparia a parada por causa da grana. Como ele mesmo diz: “Dinheiro é como sexo. Parece muito mais importante quando a gente não tem.” Como era esse o caso, Hank resolve encarar o trampo.

Como todas as obras de Bukowski, “Hollywood” é autobiográfico. O livro foi criado a partir de suas experiências ao escrever o roteiro de “Barfly” (1987), a pedido do diretor francês Barbet Schroeder. O próprio filme tem como personagem principal seu alter ego, Hank, interpretado por Mickey Rourke. Bukowski não só acompanha as filmagens como participa de uma cena. A produção ganha destaque nos jornais, e claro que os fãs do velho safado o acusam de se vender para “Hollywood”. Hank, por sua vez, só pensa em voltar aos livros e à vidinha pacata de sexo, corrida de cavalos e bebedeiras. Sendo que este último hábito ele mantém nas filmagens.

No livro, com diálogo memoráveis, humor afiadíssimo e muito sarcasmo, Bukowski esculhamba a indústria do cinema. Sem metáforas, sem enrolação, em sua linguagem bem coloquial, vai direto ao ponto: mostra que em Hollywood tem um monte de gente que só pensa em puxar o tapete do outro, ninguém está nem aí para arte, só pensam em dinheiro; e não dão valor nenhum aos roteiristas, para ele os verdadeiros criadores da obra. De todo modo, livra a cara de uns poucos. Já quando trata das celebridades da sétima arte, para não dar nome aos bois, inventa um “nome fictício”. Jean-Luc Godard, por exemplo, é Jean-Paul Moudard. Ou seja: o leitor percebe na hora quem é aquele tal Moudard que só é considerado gênio pelos colegas “porque mantém a boca fechada”.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli 
Clique aqui para ler artigos do autor.