Nações em queda

“O Homem sem qualidades” e “O Anjo Azul” tecem ácidas críticas às sociedades austríaca e alemã das primeiras duas décadas do século 20

Em “O Anjo Azul ou a Queda de um Tirano”, Heinrich Mann transporta o leitor para o ambiente carregado dos cabarés alemães do início do século 20. A história se passa na cidade portuária de Lübeck, localizada no norte da Alemanha, e retrata a progressiva derrocada de um professor do ginásio local. Immanuel Rath – apelidado pelos estudantes de Unrat, lixo em alemão – é um cinquentão rabugento e moralista que trata seus alunos como um verdadeiro tirano. Mas vê sua vida ruir ao ser enlaçado pelos tentáculos de uma dançarina de cabaré por quem se apaixona loucamente. Logo sua vivência dupla – educador severo durante o dia e libertino à noite – chega aos ouvidos da direção do colégio e da cidade inteira.

Em “O Homem sem Qualidades”, romance inacabado de Robert Musil, o cenário é a Viena de 1913. Ao contrário da dramaticidade de Mann, Musil constrói uma sátira impiedosa, por vezes hilária, sobre a sociedade austro-húngara. Destilando sarcasmo e ironia, o livro conta a história de Ulrich, um matemático de 32 anos que não se encaixa nos padrões predefinidos daqueles tempos. Enquanto tira férias da vida para tentar entender o seu sentido, ele se envolve, a pedido do pai, nos preparativos de um imperioso evento para celebrar os 70 anos de reinado de Francisco José I. O real objetivo desta grande ação patriótica é superar a festa em homenagem ao rei da Prússia, Guilherme II.

Embora apresentem narrativas distintas, as duas obras convergem em alguns aspectos. Passadas no período que antecede a Primeira Guerra Mundial, elas retratam o ar de fim de festa de dois impérios: o austro-húngaro e o alemão sob influência prussiana. Contra esse pano de fundo, Mann e Musil tecem ácidas críticas às duas sociedades vizinhas. “O Anjo Azul” expõe a dupla moral da classe média, cuja libertinagem se escondia por detrás de um falso discurso, e a atitude paternal e repressora de professores, pais e governantes. Já “O Homem sem Qualidades” mira as contradições da aristocracia e da alta burguesia: “A constituição era liberal, mas o regime era clerical. O regime era clerical, mas se vivia de forma liberal. Todos os cidadãos eram iguais perante a lei, mas nem todos eram cidadãos.”

O Homem sem Qualidades – Robert Musil
Romance inacabado, escrito entre 1910 e 1942

Reflexão filosófica? Estudo do comportamento humano? Sátira implacável? “O Homem sem Qualidades”, romance que Robert Musil levou grande parte da vida escrevendo, sem contudo concluí-lo, pode ser examinado sob vários ângulos. Trata-se de um livro denso, complexo, difícil de ler. Mas vale muito a pena. O que me fez encarar suas quase mil páginas e seguir até a última foi, principalmente, a verve cômica de Musil. O autor analisa de forma genial a nobreza e a alta burguesia austro-húngara, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. E vai fundo nessa missão. Assim como na de dissecar o interior e a alma de cada personagem.

Como já dito antes, a história se passa em Viena, então capital do Império Austro-Húngaro, a quem Musil chama de “Kakânia”. O termo é derivado da abreviação K und K, kaiserlich und königlich (imperial e real), indicando uma monarquia dupla e sem unidade política, administrativa e sentimental. A trama apresenta figuras impagáveis, como o general Stumm von Bordwer, que em alemão significa “o mundo da defesa de bordo”, e Ermelinda Tuzzi, prima de Ulrich, a quem ele batiza de Diotima – a “professora do amor” de Sócrates e aquela que honra Zeus. Musil utiliza vários nomes irônicos que revelam traços da personalidade de diferentes personagens.

A obra compreende dois livros, o primeiro dividido em duas partes. Na primeira, “Uma espécie de introdução”, conhecemos Ulrich (alter ego de Musil?) e sua busca fracassada pelo sentido da vida. Sua indiferença e versatilidade moral o transformam em um homem sem qualidades. Ulrich é amante de uma mulher casada e ninfomaníaca, a quem ele apelida de Bonadea – na mitologia romana, a deusa da fertilidade e da virgindade. Nesta parte somos apresentados também ao assassino e estuprador Moosbrugger e à esposa neurótica de seu amigo Walter, Clarisse, cuja recusa em ter uma existência comum acaba levando o marido à insânia.

A segunda parte, “A mesma coisa acontece”, mostra os preparativos para a celebração dos 70 anos de reinado do imperador Francisco José I, a Grande Ação Paralela, que pretende apequenar a festa prussiana dos 30 anos de reinado de Guilherme II. Só há um porém: a data do jubileu alemão antecede em alguns meses a do jubileu austro-húngaro, o que poderia apagar o brilho da Ação Paralela. Então, unidos pela Áustria, realeza, exército e alta burguesia decidem antecipar a data e criar o Ano Austríaco – um grandioso evento para demonstrar sua supremacia política, cultural e filosófica e ganhar a atenção não só da sociedade austro-húngara como de todo o planeta.

Ulrich, atendendo ao pedido do pai, entra para a organização da ação patriótica. As reuniões acontecem na casa de Diotima, que pretende tornar-se musa da filosofia vienense. Ela consegue atrair as atenções de Ulrich e do conde alemão Paul Arnheim, com quem acaba tendo um caso. Arnheim admira sua beleza e espiritualidade, embora não esteja disposto a roubá-la do marido, o diplomata Tuzzi. Suas intenções são outras, negócios envolvendo exploração de petróleo, e ser aceito como alemão na organização de um evento austríaco o ajudaria neste sentido. Para isso, chegou até a afirmar que a verdadeira Áustria era o mundo inteiro.

As reuniões para se descobrir um nome, um objetivo, uma razão lógica que justificasse a existência daquele imponente evento – e quais ações implementar para colocá-lo em prática – são animadas e intermináveis, e os participantes engajam-se em longas conversas. Tudo transcorre em meio a uma atmosfera mística. Por isso, o hilário general Stumm acaba sendo malvisto ali por tentar fazer as coisas de modo sistemático. Stumm representa o alto comando do Exército Imperial e Real, que o coloca ali para espionar e tentar descobrir as “verdadeiras intenções” daqueles convescotes.

Enquanto os organizadores discutem inúmeras propostas para dar um sentido à grande Ação Paralela, como um Ano Universal da Paz capitaneado pela Áustria, a Europa está à beira da Primeira Guerra Mundial. Discute-se todo tipo de assunto, ideias bizarras e delirantes se multiplicam, mas nada acontece. A ação inexiste. Diotima, por exemplo, “sempre que estava se decidindo por uma ideia, notava que o contrário dela também seria grandioso”. Já o conde Leinsdorf, responsável por avaliar sugestões para o evento, “decide não decidir nada por enquanto”.

Ao longo do livro, Musil deixa claro que a maneira de o Conde Leinsdorf decidir as coisas não diferia muito do modo como procediam as autoridades da Kakânia. Como nessa passagem sobre um dos ministérios: “A Repartição Um escrevia, a Repartição Dois respondia; quando a Repartição Dois tivesse respondido, seria preciso avisar disso à Repartição Um, e era melhor que se sugerisse uma reunião; quando Repartição Um e Repartição Dois chegavam a um acordo, constatava-se que nada poderia ser feito; e assim sempre havia o que fazer.”

O segundo livro, terceira parte da obra, está centrado nos anseios incestuosos envolvendo Ulrich e sua irmã Ágata, que abandona o marido e vai morar com o irmão em Viena. Através dessas duas “almas siamesas”, como os dois se viam, Musil mergulha em profundas reflexões filosóficas. Mas sem abandonar a verve cômica. Num dos convescotes na casa de Diotima, o general Stumm, sempre à espreita, quer saber se Ulrich conhece o tal poeta Feuermaul. Ulrich responde: “Sim, o poeta lírico.” Stumm, desconfiado deste termo inusitado, esquiva-se: “Ele faz uns versos.” Ulrich ressalta que os versos são ótimos e que Feuermaul também faz peças de teatro. “Disso não sei, não trouxe minhas anotações”, se explica o sistemático general.

O anjo Azul – Heinrich Mann
Escrito entre o final de 1903 e agosto de 1904

Irmão mais novo de Thomas Mann, Heinrich Mann notabilizou-se por ser um crítico contumaz da sociedade alemã da época Guilhermina (1888-1918). E denunciava características quase doentias do comportamento das autoridades. “O Anjo Azul” é um belo exemplo disso. A novela serviu de roteiro para o filme homônimo de 1930, dirigido por Josef von Sternberg, que alçou Marlene Dietrich ao estrelato. A obra retrata a derrocada do tirano Immanuel Rath, talvez a representação da própria derrocada alemã. Professor de um ginásio em Lübeck, Unrat (lixo) – como apelidado pela turma – era não só um educador rígido como acabou por tornar-se um fiscal da vida privada dos alunos, a quem via como verdadeiros inimigos. Em troca, era alvo de várias chacotas dos estudantes.

Mann cria Unrat como o típico filisteu alemão da época: autoritário, pedante, rabugento e de mentalidade estreita. Viúvo e solitário, Immanuel Rath odeia as pessoas à sua volta. Sua vida, porém, sofre um abalo terrível ao espionar e seguir um aluno até o Cabaré Der Blaue Engel (O Anjo Azul). Lá ele se depara com a deslumbrante corista e cantora Rosa Fröhlich. Seduzido pela Vênus noturna, cego de paixão, Unrat se prende a uma teia luxuriante que o leva à ruína: começa a frequentar o cabaré todas as noites, passa a se autodenominar protetor da artista, exige que ela rompa qualquer tipo de relação com admiradores, principalmente com seus alunos, e se envolve em várias confusões para afirmar sua autoridade sobre ela.

Não demora para que a vida dupla do velho mestre chegue aos ouvidos da direção do ginásio e da cidade toda. Frente aos alunos, ele perde completamente a autoridade moral. O diretor, pasmo com o comportamento do professor, não vê outra solução a não ser demiti-lo. Um pastor luterano até tenta salvá-lo de sua paixão insana, mas Unrat o expulsa de casa por não admitir insinuações sobre o caráter de sua musa. Para espanto geral, depois de queimar suas economias levando a corista a lojas e restaurantes, Rath casa-se com ela. E quando suas reservas financeiras se esvaem, ele monta um cassino improvisado dentro de casa, frequentado por admiradores da corista, muitos deles ex-alunos seus. Logo sua casa se transforma, segundo o falatório geral, em um antro de devassidão.

Com já dito no texto de abertura da resenha, Mann denuncia no livro a dupla moral da classe média e seu falso discurso. E a decisão do autor de focar a obra na decadência moral de um mestre-escola alemão não foi uma escolha arbitrária. Na época, os professores do país eram considerados respeitados bastiões da moralidade e da honra. Eles funcionavam como importantes agentes de ligação do poder autocrático com os estudantes. Sua verdadeira missão era doutriná-los para que no futuro se transformassem em súditos obedientes, submissos, admiradores do regime e do imperador. Cuja queda se daria em novembro de 1918, dois dias antes da derrota alemã na Primeira Guerra Mundial.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.