“Hereges” e “O Segredo do Oratório” partem de uma consistente pesquisa para conectar diferentes épocas, em duas poderosas narrativas sobre a saga do povo judeu

Em “Hereges”, um garoto judeu da Cracóvia refugia-se em Havana durante a Segunda Guerra Mundial. No século 17, um jovem judeu apaixonado por pintura infringe os princípios de sua religião ao buscar os ensinamentos de Rembrandt. Nos anos 2000, o detetive Mario Conde é procurado por um homem que pretende saber o que ocorreu com um quadro de Rembrandt que seria utilizado como suborno para possibilitar o desembarque em Cuba de seus antepassados refugiados da guerra.

Em “O Segredo do Oratório”, judeus da Península Ibérica fogem da Inquisição, se abrigam nos Países Baixos e, graças à tolerância religiosa do governo holandês, rumam para o Nordeste brasileiro, sendo que um dos navios perde o rumo e aporta na então desconhecida Ilha de Manhattan. Nos anos 2000, uma médica paraibana se descobre descendente de cristãos-novos e inicia uma jornada reveladora pelo interior nordestino em busca de suas raízes.

Leonardo Padura – reconhecido internacionalmente pela premiada obra “O Homem que Amava os Cachorros” e pela série de romances policiais protagonizada pelo detetive Mario Conde – e Luize Valente – autora do comovente “Uma Praça em Antuérpia” – partem de uma consistente pesquisa histórica para conectar diferentes épocas, em duas poderosas narrativas sobre a busca da liberdade, o combate à opressão e a descoberta das raízes judaicas no Brasil.

Hereges (2013) – Leonardo Padura

“A heresia, ou seja, a ruptura com a ortodoxia dominante, tem sido um dos fatores mais importantes no desenvolvimento da humanidade. O herege busca ser um revolucionário ou ao menos alguém que não se contenta com uma única forma de pensar. Tenho por eles uma enorme admiração. É preciso ter valor para ser herege e, ainda mais, para demonstrar isso numa sociedade em que um pensamento único domina, determina e condena”, disse Padura à época do lançamento de “Hereges”. A obra, além de reunir história, religião, política, arte, aventura e mistério, é também um envolvente romance policial. Ao mesmo tempo em que narra a saga do povo judeu ao longo dos séculos, Padura reflete sobre a própria história e política de Cuba.

“Hereges” narra três histórias que se inter-relacionam. O ponto de convergência entre elas é um pequeno quadro de Rembrandt. A primeira, “Livro de Daniel”, se passa durante a Segunda Guerra Mundial. O menino Daniel Kaminsky e seu tio aguardam no Porto de Havana a chegada do navio S.S. Saint Louis com 937 refugiados judeus. O pai, a mãe e a irmã de Daniel estão entre os passageiros e trazem consigo a referida tela do pintor holandês. Eles têm esperança de que o quadro, há anos com a família, lhes garanta a liberdade. No entanto, após vários dias de espera, são impedidos de desembarcar no país.

Curiosamente, em 2007, é anunciado em Londres o leilão de um pequeno quadro de Rembrandt. Elias, filho de Daniel Kaminsky, ao suspeitar de que se trata da pintura que pertencera à sua família, viaja até Havana e contrata os serviços do ex-detetive de polícia Mario Conde – um escritor frustrado que sobrevive da compra e venda de livros usados – para tentar descobrir a trajetória da valiosa tela. Elias está certo de que, embora sua família não tenha desembarcado do S.S. Saint Louis, a pintura fora tirada do navio. Sua origem é revelada na segunda parte da obra, “Livro de Elias”, através de um jovem judeu, Elias Ambrosius, que vivera no século 17 ao lado de Rembrandt.

Na terceira história, “Livro de Judith”, Conde investiga em Cuba o desaparecimento de uma adolescente emo, fato que acabará se conectando à família Kaminsky e ao desaparecimento do misterioso quadro – quebra-cabeça resolvido na última parte do livro, “Gênesis”. Trata-se de um romance histórico fascinante, sobre as grandezas e misérias da vida humana, a luta contra o pensamento único e a opressão e, acima de tudo, sobre a busca e o amor pela liberdade. Sem dúvida o melhor livro de Padura, daqueles que a gente não consegue parar de ler.

O Segredo do Oratório (2012) – Luize Valente

Europa, século 17. Os judeus da Península Ibérica, considerados hereges pelo Santo Ofício, fogem para os Países Baixos. De Amsterdã, beneficiados pela tolerância religiosa do governo holandês, transferem-se para o Nordeste brasileiro. Desses refugiados, um pequeno grupo chega acidentalmente à Ilha de Manhattan, onde forma a primeira comunidade judaica da América do Norte, a Nova Amsterdã. Na mesma época, no Nordeste, os portugueses expulsam os holandeses. Mais uma vez acuados pelo fantasma da Inquisição, os refugiados judeus embrenham-se em pequenas vilas no interior de Pernambuco e Paraíba, como Córrego do Seridó e Sertão do Seridó.

Em uma surpreendente narrativa permeada de mistérios, Luize Valente faz a ponte entre a comunidade judaica que fincou raízes no sertão nordestino e a que se constituiu em Nova Amsterdã. Valente inicia esta jornada pela primeira. Por trás da fachada cristã, esses judeus portugueses continuaram a manter suas tradições. Porém, no processo de resguardar sua fé para se proteger da Inquisição, as futuras gerações acabaram se distanciando de suas raízes. Os rituais, de todo modo, permaneceram. Ainda hoje, varrem a casa de fora para dentro, rezam para a lua cheia, acendem velas com mel, não jogam lixo pela porta da frente, enfim, mantêm costumes tipicamente judaicos; embora grande parte das famílias que vivem nessas pequenas comunidades ignore completamente a origem desses antigos rituais, que se confrontam com os do judaísmo atual.

Boa parte da população brasileira é descendente desses judeus e não sabe. Assim como a médica paraibana Ioná, uma das protagonistas de “O Segredo do Oratório”. Descendente de cristãos novos, ela acaba descobrindo que sua família guarda um importante segredo sobre seus antepassados. Então inicia, junto com a amiga Ana – e contando com a ajuda da professora Ethel Mendelstein, autoridade mundial em Inquisição Portuguesa –, uma incansável investigação e uma grande aventura pelos sertões de Pernambuco e Paraíba, à procura de suas raízes. Lá, a partir das raízes da família Mendes de Brito, Ioná e Ana querem chegar a uma judia portuguesa que veio de Amsterdã para o Nordeste durante a ocupação holandesa e sua ligação com a primeira comunidade judaica de Nova York. Um romance revelador sobre a história dos judeus no Brasil.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.