A essa altura, bastante gente já deve ter visto a dura resposta de Vladimir Putin a uma jornalista inglesa quando numa conferência de imprensa ela lhe perguntou se poderia “garantir incondicionalmente que não invadiria a Ucrânia ou qualquer outro Estado soberano”. Além de algumas informações históricas, como a de que a Ucrânia foi criada por Lenin em 1922, Putin respondeu muito diretamente que suas futuras ações dependeriam da “garantia incondicional da segurança da Rússia.” E acrescentou: “Assim sendo, dissemos claramente que a futura expansão da OTAN em direção ao Leste é inaceitável. Será que não dá para entender? Como os americanos reagiriam se colocássemos nossos mísseis na fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos?”.

A clareza da retórica e a lógica política que a sustenta são implacáveis e seriam necessárias doses cavalares de cinismo e hipocrisia para não reconhecer que se trata da mesma lógica que conduz as ações do Império americano e dos seus aliados europeus (nas questões dessa natureza, mais servos que aliados, onde até históricos partidos social-democratas se tornam dóceis seguidores das ordens de Washington). O mesmo cálculo incomensuravelmente indecente da razão prática.

Mas quem está interessado em ver? Quem, a essa altura, está minimamente interessado em parar para refletir e tomar lições da história? O que importa é instigar o espírito de rebanho, é alimentar o raso das percepções e dos sentimentos.

Numa pequena manifestação em Barcelona, logo no início da invasão, uma entusiasmada moçoila, paladina dos bons sentimentos humanos, atacava com toda a sua fé a necessidade de interromper “o genocídio dos ucranianos”. Nem mais nem menos, foi essa a expressão peremptória. Segundo a fala repetida e repetida no telejornal da televisão espanhola, Putin tinha dado início a uma autêntica operação de genocídio ao invadir a Ucrânia. Sim, já sabemos, a verdade é a primeira vítima da guerra. Mas o despudor com o qual a desinformação, a parcialidade e a fabricação da histeria estão sendo levadas a cabo pelos meios de informação ocidentais tem adquirido escalas talvez tão aterrorizantes quanto as da própria guerra.

Ligar a TV e transitar pelos telejornais da Espanha por esses dias pode ser uma experiência assustadora – ao menos se você tiver algum juízo e um pedacinho de distanciamento crítico. Se alguém decidir se perguntar em qual ou quais outros períodos do mundo contemporâneo se construíram tamanhas unanimidades pode se deparar com respostas muito desagradáveis. Tente. Burra? Muito mais que burra, a unanimidade pode se tornar criminosa e, como prova a história, quase sempre se torna.

Passadas duas semanas do início da guerra, poucas, raríssimas são as vozes que por aqui se opõem ao enfrentamento bélico. Na Espanha, o Podemos (nada a ver com o Podemos daí), embora componha o governo de coalizão com o PSOE, tenta dar início a um movimento europeu pela paz, em aliança com o francês Jean-Luc Mélenchon (França Insubmissa) e Jeremy Corbyn (ex-líder do trabalhismo inglês). Mas há na atmosfera uma espécie de gozo coletivo. Todos contra o demônio encarnado agora na figura do russo. Numa das inúmeras tertúlias televisivas (assim eles chamam por aqui as rodas de debates), logo ao amanhecer, uma das jornalistas convidadas, óbvia simpatizante do partido de Pedro Sanchez, bate duro no governo: não, não é suficiente mandar armas para os ucranianos, discursa, aliás é até equivocado pois vão acabar nas mãos dos traficantes de armas (no que está bastante correta!), tem é que ir lá, intervir, se meter na guerra (sic!)… a Espanha, a França, todo mundo. E salve-se quem puder.

Descrevendo o clima que tomou conta dos austríacos nos momentos que antecederam a I Guerra, um entusiasmado professor de história o qualificou como “júbilo de agosto” (Modris Eksteins em A Sagração da Primavera). Levou ao que conhecemos como um dos maiores morticínios da história. Poucos se opuseram, quase ninguém – os comunistas (ainda existiam, os anarquistas, ainda existiam e eram muitos e verdadeiros, dois ou três escritores e jornalistas, como o imenso Karl Kraus em Viena). O frenesi de um lado e outro tomou conta das ruas em imensas ondas de indignação até que o número de cadáveres começou a formar montanhas.

As mobilizações contra a invasão de agora nem de longe correspondem ao tamanho da indignação. Nem de longe lembram tampouco os protestos contra a invasão do Iraque que menos de 20 anos atrás tomaram as ruas das principais capitais europeias. Bem mais sério que o professor canadense, o historiador Ian Kershaw lembra que em “15 de fevereiro de 2003, em torno de um milhão de pessoas, numa das maiores demonstrações de protesto da história da Grã-Bretanha, se manifestaram em Londres. Também se organizaram enormes manifestações contra a guerra na Alemanha, França, Grécia, Hungria, Irlanda… e em outros países europeus; as maiores foram as da Itália (umas três milhões de pessoas) e Espanha (1,5 milhão) e se calcula que mais de dez milhões de pessoas participaram nelas em todo o mundo” (Ascenso y Crisis – Europa 1950-2017: un camino incierto).

Não estamos presenciando nada semelhante, quem sabe porque os cidadãos nesse momento se sintam devidamente representados em sua incontida revolta interior pela autêntica indignação das empresas que os provê com seus cartões de crédito e seu entretenimento diário (Visa, American Express, Netflix e que tais). E pode ser que, ao contrário das manifestações dos milhões de europeus nas ruas 20 anos atrás, estas sejam insuficientes para impedir a invasão da terra dos outros (ou de um Estado soberano, para usar a expressão da jornalista britânica) pelo Império, Putin seja derrotado não pela unanimidade orgiástica instigada pelos mass media, mas pelos muito mais efetivos mecanismos de pressão do sistema internacional do Kapital (porque, ao contrário do que pensa a apresentadora da Globo Ana Maria Braga, Putin e seu império são tão comunistas quanto o falecido Roberto Marinho o era).

Os nossos escrúpulos e os dos outros

No artigo de Paul Krugman de 6 de março, o final de uma das frases chama a atenção: “… se a maior parte do mundo estiver unida em sua repulsa contra a agressão militar de um governo sem escrúpulos”. Eu gosto da expressão dita por quem a está dizendo porque não é a primeira vez que o economista democrata e prêmio Nobel se refere a esse tipo de governo ou governante. O que é muito justo. Afinal, eles abundam. O que não me parece justo é que, usada no contexto em que a usou domingo passado, acaba soando como se estivesse se referindo a uma singularidade, e Putin e o governo russo como a exceção a ser isolada (pelo resto do mundo) e combatida (pela OTAN, obviamente). Ou me engano quanto ao contexto?

E, no entanto, Krugman talvez possa se recordar do que escreveu o próprio Krugman. Claro, ele certamente se recordará. Pode ser que tenha pequenas crises de amnésia quando em seu país governa o partido do bem (que em política externa usualmente é muito mais guerreiro que a sua cara metade, seu duplo, seu superego, ou seja que diabo for que um represente para o outro). Seja como for, recordemo-lo. Porque num artigo publicado em 4 de outubro de 2018 e republicado em Contra os Zumbis – Economia, política e a luta por um futuro melhor (2020), nada esperançoso, ele chega ao final dizendo:

“Para além disso, nossa tendência à oligarquia – o governo de poucos – se assemelha cada vez mais a uma caquistocracia: o governo do pior, ou pelo menos o que menos escrúpulos tem.”

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

Leia também “A OTAN no centro do conflito na Ucrânia“, de Luiz Marques.