Félix pateta
O som da TV ecoava alto demais na praça de alimentação grande e vazia do shopping. Além dos trabalhadores de lá, apenas umas poucas pessoas perambulavam a esmo às 10 da manhã. Félix tomava seu desjejum com gosto industrial e desgostosa solidão. Entre uma mordida e outra num empadão de frango e goles de capuccino, entretia-se com o vai e vem de gente aleatória e a pantomima da TV.
Uma apresentadora em cenário de sala de estar de gente rica, com uma árvore de natal ao fundo, falava de gente famosa que se suicidou neste ano. A retrospectiva mórbida de sempre. Fez sensacionalismo com o suicídio provocado pelo sensacionalismo de um blogue. Tragédias, crimes e barbaridades são sensacionais, é o que distrai um público aflito para se esquecer dos próprios problemas assistindo aos problemas dos outros.
Na mesa ao lado, um casal de gringos também assistia ao obituário natalino e ria, ria muito. Félix não sabia dizer se riam porque não entendiam nada do que se falava na TV ou se entendiam para além do que a maioria entenderia. “Talvez seja isso”, pensou, “É mesmo patético tudo isso”.
E naquele momento, seu “tudo isso” não era apenas a TV, mas a praça de alimentação, sua comida cara e indigna de ser chamada de refeição, a gente que vai e vem com cara de perdida entre vitrines poluídas de cores, formas e números pequenos, os gringos risonhos no meio daquela pasmaceira e, principalmente, ele, que se sentia absolutamente patético estando ali, sozinho, comendo mal e pensando em como era patético pensar na patetice daquele momento.
Sem mais empadão e capuccino, não viu sentido em continuar sentado ali. Pôs-se a caminhar a esmo, como os outros. “Patético como os outros”, disse em voz alta sem se dar conta.
Dobrou um corredor e topou com um pula-pula daqueles enormes e com cores contrastantes entre preto e neon que formavam um cenário cyberpunk. Não tinha ninguém no pula-pula, exceto uma moça com ar sonolento e entediado que cobrava e controlava a entrada. Félix parou em frente. Pensou em entrar e pular. Por que não? Seria patético, mas tudo aquilo já lhe parecia patético mesmo. Hesitou. Avançou. Recuou. Deu meia volta. Parou novamente. Nova meia volta. Avançou resoluto. “Quanto é?”
Pagou, tirou os sapatos e entrou fazendo cara de quem não liga para o que os outros pensam dele, só para disfarçar sua preocupação com que os outros pensam dele. A moça da porta fez cara de quem pensava ser ridículo aquele marmanjo pulando feito criança ali dentro, mas só para esconder que também queria estar pulando ali, mas não tinha a coragem de Félix.
Saiu antes de acabar o tempo a que tinha direito porque ficou tonto. “Definitivamente, meu tempo de fazer essas coisas passou”. Ficou meio enjoado, mas estava se sentindo menos patético. Na equação das emoções inevitáveis, o enjoo compensava a vitória sobre a vergonha de ser patético. Estava mais leve, como se o espírito ainda flutuasse entre a subida e a queda na borracha elástica do pula-pula.
Finalmente, sentiu-se pronto para encerrar o ano. Era disso que ele precisava e, até aquele momento, não sabia. Precisava flutuar um pouco, mergulhar na patetice de sentir-se patético, ter coragem de ser ridículo no meio de tanta gente ainda mais ridícula do que ele, mas que faz o esforço ridículo de não parecer ridícula.
Que venha 2024! Félix está pronto para toda patetice que possa vir.
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Ilustração: Mihai Cauli
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