Na coletânea publicada pelo Instituto de Economia da UNICAMP e organizado pelos professores Luiz G. M. Belluzzo e Renata Coutinho em 1982 (Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise) havia um artigo instigante intitulado “Capitalismo associado: algumas referências para o tema Estado e Desenvolvimento”, de autoria dos professores Carlos Lessa e Sulamis Dain, no qual discutiram e analisaram a natureza dos processos de industrialização e seus desdobramentos na América Latina, assinalando diferenças e semelhanças. Um dos pontos abordados tratou exatamente da necessidade de entendermos os circuitos “pervertidos” de acumulação. Vejamos:

Estamos em um momento de franqueza, em uma hora da verdade e é conveniente ampliar a confissão. Os economistas têm estado sumamente obcecados pela industrialização e sabem muito pouco sobre o que ocorreu com as demais órbitas do capital – bancárias, comerciais, agrárias, etc… – como se movem ao longo da transição, como se situar nos poucos casos em que a industrialização se constitui no novo padrão de desenvolvimento. Sempre em busca da controvérsia e com toda imprecisão que o leitor nos permite, acreditamos que é identificável em nossas experiências a presença de padrões “pervertidos” de valorização nessas outras órbitas. A permissividade com os movimentos especulativos, a obliqüidade patrimonialista, a hipervalorização com os prédios urbanos e rurais, as inflações seculares, etc… são manifestações tão arraigadas e universais na América Latina, que suspeitamos estarem vinculadas ao pacto básico. Não temos a pretensão nem a capacidade de estabelecer as mediações requeridas para a fundamentação da interligação. Desejamos apenas suscitar elementos que permitam a suposição.”

Curioso e irônico observar as últimas linhas da citação acima; os autores estavam construindo pontes para novas reflexões que têm a ver com as formas “pervertidas” de valorização e o pacto básico na América Latina. Existe aí certo parentesco com o seminal ensaio “Crítica à razão dualista” do Professor Chico de Oliveira, mas desejo enfatizar que, além disso, há uma reflexão sobre a modernidade capitalista vinda com a industrialização e suas dinâmicas que tomam conta dos debates econômicos. O que fica ausente e está assinalado são os pontos fora da curva, uma realidade que se cria e articula em espaços de valorização com outras lógicas em atividades especulativas, conluios e apropriações visando ganhos patrimoniais ou variados delitos, numa informalidade da contravenção ou mesmo do crime, que são a face espúria da informalidade.

Em 1982, quando o artigo foi publicado, a economia brasileira vinha desde os anos 30, portanto há 50 anos, com crescimento industrial e com o emprego formal superando outras formas de ocupação em sua expansão. Com ditadura ou democracia, concentrando renda ou distribuindo, o setor formal cresceu em termos relativos e absolutos durante cinco décadas.

Com o esgotamento do crescimento a qualquer custo (mega projetos do “milagre econômico” financiados a juros flutuantes), endividamento e inflação crescentes, turbinados pela alta dos juros e da política do dólar forte nos EUA a partir de 1979, somente na entrada dos 80´s passamos a conhecer o desemprego como um fenômeno visível. Nesse quadro de crise o emprego formal deixou de ser o mais expressivo nas vagas geradas e cedeu lugar ao trabalho precário e o auto-emprego, ambos na informalidade. Desigualdade e trabalho precário sempre houve no Brasil, mas desemprego até então era novidade.

O processo inflacionário se acelerou, o mesmo ocorreu com a dívida externa e em 1986 o Plano Cruzado foi a primeira tentativa seguida de outras, até que em 1994 o Plano Real conteve o processo inflacionário. Esse aspecto positivo teve um preço amargo, que foi a valorização cambial reduzindo a competitividade de nossas exportações e favorecendo as importações. Com algumas variações, essa tendência se manteve até os governos Lula e Dilma, nos quais a valorização da produção e do emprego, especialmente do salário mínimo, foi reforçada como parte da política salarial e reforçada pela conjuntura favorável do “efeito China”, com relações de troca mais favoráveis às commodities. Esse período representou um contraponto positivo para a economia brasileira e o mercado de trabalho, mas sem reverter o processo de reprimarização em curso.

Assim é que, os últimos anos têm sido dramáticos; queda nos preços das commodities, o golpe de 2016 e o contexto de anormalidade no qual o Estado brasileiro passou a ser desmontado na sua capacidade de responder a velhos e novos desafios, em que a pandemia é sua face mais dramática.

Nesse sentido, as questões postas neste artigo ficaram ainda mais atuais e agudas na medida em que esses circuitos “pervertidos” ampliaram seu alcance na economia e na sua representação na sociedade brasileira. Resumidamente, esse contexto tem a ver com dois vetores. O primeiro deles deriva do retrocesso na matriz produtiva, que está menos complexa e integrada do que já foi até os 80´s, em que o principal sintoma é a crescente participação das commodities no conjunto da produção e na inserção comercial brasileira na economia internacional. No volume do emprego, isso implica em sua redução na medida em que, quanto menos complexa a matriz produtiva, menor a geração de emprego no volume e na qualidade, tendo em conta a natureza do vínculo e o rendimento. Aliás, nesses últimos anos estamos exportando empregos de qualidade com a devastação do tecido empresarial nos serviços de engenharia nacional e na redução dos investimentos do BNDES, FINEP, assim como no conjunto de nosso sistema nacional de inovação (Ministério da Educação, CAPES, CNPq, e as Fundações de Amparo a Pesquisa na escala estadual).

O segundo vetor se origina nas dificuldades do Estado brasileiro em seu papel de planejar, regular, fiscalizar delitos de toda ordem, particularmente em questões trabalhistas e sócio ambientais. Não atuar nestes circuitos é uma opção política e é onde se originam as formas “pervertidas” de valorização. O que se passa com as queimadas seguidas da ocupação por gado sem registro e não rastreado, a flexibilização dos agrotóxicos pela Agência Nacional de Saúde, as restrições à atuação do IBAMA e da Polícia Federal para facilitar a exportação de madeira extraída ilegalmente ou a mineração em áreas de reserva indígena é uma amostra gritante desse processo em curso.

Nas cidades surgiram vários negócios à margem da lei, como os de empreendimentos imobiliários piratas, sem licença. Há poucos dias, ocorreu um segundo desabamento de prédio com pai e filha falecidos no bairro carioca de Rio das Pedras, berço das milícias, dois anos depois de 24 óbitos em outro desabamento no mesmo local sem que ninguém fosse punido. Esse é um segmento lucrativo juntamente a outras atividades mercantis de bens e serviços, notadamente os de transporte, “proteção privada” e distribuição de gás em botijão. Tudo à margem de qualquer regulação.

Retornando à questão apresentada inicialmente e depois de quase 40 anos de percurso, o contexto brasileiro nunca foi tão favorável ao crescimento das mais variadas formas “pervertidas” de valorização como no momento em que vivemos. Não se trata apenas de uma discussão sobre a informalidade espúria, mas também dos riscos aí presentes, pois esse não é o campo da cidadania, da inclusão social e produtiva.

Resgatar a capacidade do Estado brasileiro de planejar, regular e prover de necessidades básicas não será uma tarefa fácil, a começar pela crise sanitária, mas é de batalhas que se vive a vida, como dizia Raul Seixas.

Teremos de recuperar um patamar mínimo de coesão social, gerar crescimento e distribuição de renda em bases sustentáveis, iniciando pelo acesso à saúde, educação, trabalho, comida no prato e vacinação em massa. Viva o povo brasileiro!

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O artigo publicado represena a opinião do autor e não do Conselho Editorial do Terapia Política.