Soltava a fumaça lentamente. Observava os desenhos abstratos que a fumaça fazia. Imaginava como sendo galáxias nebulosas onde estrelas e planetas nasciam e morriam. Salvador se sentia como um Deus que observava tranquilo a dança do espaço. Fumava todo dia. Para relaxar. Também para comungar com outros jovens como ele seus momentos estrelares, suas ideias e seus afetos.
Eram os anos 60 e tudo era diferente. Mais colorido, mais dançante, mais amoroso. No seu mundo, era proibido proibir. Entorpecia-se para abrir as portas da percepção. Descobria coisas sobre o mundo e sobre a vida. Pensava construir, naquele momento, a era de aquarius.
Não era alienado. Sabia das guerras quentes e frias que matavam mundo afora. Vivia nos Estados Unidos, mas sabia dos horrores da ditadura no Brasil. Nas ruas de lá, gritava palavras de ordem contra a guerra do Vietnã. Vez ou outra, soltava em bom português “abaixo a ditadura!”. Ninguém entendia. Pensavam que era algum grito indígena em espanhol.
Tinha verdadeiro horror e nojo daquela gente velha e careta, sempre vestida com ternos escuros e aqueles óculos de grossos aros de tartaruga. Gente triste, de cara sempre carrancuda que pareciam viver para entristecer o mundo.
Os caretas de terno, batina ou uniforme também não gostavam de jovens como Salvador. Eram rebeldes. Não entendiam os valores do mundo, principalmente pareciam não entender o valor do dinheiro que, no final das contas, era o que havia de mais sagrado para todos, exceto para gente como Salvador. Eram um perigo. Aquela juventude desapegada e ingênua não poderia prosperar.
Na sua ingenuidade careta, acreditavam que toda aquela rebeldia era por causa das drogas, da liberdade de consciência que ela traria. Resolveram-se por resolver o problema da juventude do mesmo jeito que resolviam todos os outros problemas, com guerra. Declararam guerra às drogas.
No mesmo ano em que os americanos declaravam guerra às drogas, Salvador voltou para o Brasil. Trouxe de lá as roupas coloridas, discos de soul, as ideias da era de aquarius e maconha. Chegou jovem transviado. Amizade perigosa para os bons jovens futuro da nação.
Em pouco tempo, Salvador percebeu que o fim de sua vida de estudante o obrigava a trabalhar. Arrumou um emprego para trabalhar vestido como os caretas que tanto odiava. Guardou para si suas ideias de aquarius. A maconha era coisa para se usar, agora, clandestinamente. Foi se enquadrando. Policiando-se para não dar na pinta. Precisava do emprego.
O trabalho lhe trouxe outras necessidades e o casamento, outras mais. Engajou-se cada vez mais no trabalho e no consumo. Fez sucesso em ambos com emprego, casa, carro, esposa e amante invejáveis. A maconha virou coisa do passado. No seu lugar, uísque caro e vinho sofisticado.
Com ideias cada vez mais carretas, com a caretice de seu novo tempo, tornou-se candidato natural a deputado. Em campanha, mostrou-se religioso porque era o que convinha ao voto. Na articulação política, mentiu, traiu, prometeu o que não entregaria porque também era o que lhe convinha à vitória. Ganhou.
Com dois anos de mandato estava à vontade no jogo e performances típicas do Congresso destes nossos dias. Escrevia um inflamado discurso sobre o problema da maconha. Caprichava nos adjetivos para redeclarar, novamente, mais uma vez, guerra às drogas.
Procurou outra caneta na gaveta e deu de cara com uma antiga foto. Era ele nos anos 60. Hippie, fumando maconha. Ao seu lado, Levi. Companheiro daqueles tempos, que morreu há cinco anos no Rio, vítima de bala perdida na guerra às drogas. Contemplou seu passado por um tempo. Viu-se invadido de inúmeras lembranças de momentos felizes de felicidade genuína, bem diferente das felicidades de seu presente.
Pensou na sua juventude derrotada, não pela guerra às drogas, mas pelo consumo e pela ambição. Vencida na conversão à caretice que combatia. Pensou nos mortos na guerra às drogas como Levi, “quantos seriam?”.
Uma tristeza genuína ameaçou dominar-lhe o espírito. Respirou fundo, fechou os olhos e rasgou a foto. Encheu o copo de uísque caro e jurou a si mesmo nunca mais pensar naquela juventude destruída.
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Ilustração: Mihai Cauli
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