A juventude tem um termo maravilhoso, “gatilho”. Gatilho me parece ser tudo aquilo que provoca uma situação de desestabilidade emocional e psíquica, que reverbera à medida em que você entra em contato com alguma coisa externa que retira o equilíbrio. O carnaval é um gatilho para aqueles que vão atrás dele, é simbólico, político e alegre. Acima de tudo, alegre! Ele tem o seu lado econômico, pois gera emprego, movimenta as cidades. É verdade, o ano inicia após o carnaval.

Este ano a festa foi suspensa. Gatilho armado pelo saudosismo dos foliões e pelas lembranças sórdidas desse último ano. Sentiram todas aqueles que têm no carnaval sua sobrevivência, seus negócios. Mas outros também sentiram, os que gostam de pular e aqueles que gostam apenas de absorver a alegria.

Mikhail Bakhtin escreveu sobre o carnaval da Idade Média e do Rensascimento, definindo-o como uma “festa que não distingue classes, fortunas, relações familiares ou emprego”. Falando deste pesquisador, Soerensen (2011) chamou a atenção para as ideias trazidas por Bakhtin, principalmente a de que “carnavalizar” é a reunião democrática de apropriação das ruas, todos juntos num mesmo balaio, como uma confluência democrática de dissolução hierárquica das classes sociais, pois a “linguagem carnavalesca libera a consciência, o pensamento e a imaginação humana, para se mostrar disponível a novas possibilidades”.

Durante o carnaval, milhões passam a viver a vida imposta pelas regras da festa, aceitam que valem suas leis, principalmente a da liberdade. O pensador russo, escrevendo sobre eventos longínquos no tempo e no espaço, dirá que o grotesco, próprio ao carnaval, admite a junção de elementos heterogêneos, ajuda a pessoa liberar-se do ponto de vista dominante, traz a relativização das coisas. Por isso são admitidas as satisfações materiais e corporais, como comer, beber, dançar, copular, nas cidades e nas praças, locais públicos. Os corpos iniciam uma jornada de comunicação, uma caminhada topográfica.

A festa continua e é também um espaço político para contestação, para o deboche e a chacota das elites. As cidades são postas em xeque e ocorre uma ocupação genuinamente pública, rompendo com o predomínio dos muros, das cercas, dos condomínios e da cultura do medo. Por todos estes significados, alguns lembrados aqui, outros tantos que vêm à memória de cada um, que as ditaduras são refratárias ao carnaval, Bolsonaro é refratário ao carnaval.

Este ano o gatilho foi diferente, talvez único na história do país. Ele provocou o trauma e o medo como sensações. Venceram os muros, as grades, e a cidade ficou vazia. O homem da meia-noite ficou só caminhando nas ladeiras de Olinda.

O brasileiro, pelo menos a maioria, gosta da vida, não aceita o obscurantismo. Ele vê o governo desprezando a força do vírus, mas não se rende e luta contra a morte com as armas que possui. Se as únicas disponíveis por enquanto são as máscaras e ficar em casa, foram elas que milhões usaram. Se o carnaval é a festa pela vida e liberdade, isolar-se foi a celebração deste ano.

Vivo, o carnavalesco não ficou preso. Sua imaginação continuou a funcionar e ele pôde fantasiar um carnaval na sua cabeça, na criação de músicas, interpretando músicas antigas, desenhando… Não existem muros para tolher sua inventividade.

O “Bafafá”, em 2021, na cabeça de seus foliões, continua inventivamente estacionado no Posto 9, na praia de Ipanema, seguindo os conselhos de seu parceiro, o “Esquenta mas não Sai”. O “Parei de Beber, mas não de Mentir” está bem desestimulado, afinal encontrou grandes mentirosos com muito mais recursos; Trump e Bolsonaro. Este ano, as “Mulheres de Chico” e a “Banda das Quengas” saíram no mesmo dia, os dois blocos estavam vestidos como Damares e na bateria estava Crivella.

Por meio da imaginação conseguimos supor fantasias ícones que veríamos nas ruas, bloco das moças de leite condensado, bloco dos laranjas, zé gotinhas, capitão cloroquina, e a infinidade de jacarés solteiros se jogando ao som de Furta Cor. Mas ficamos com as lives. A Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo oficializou 380 eventos online para os foliões responsáveis e que prezam pelo bom senso e pela vida. Pelo Brasil a fora a toada foi a mesma, todos órfãos do Rei Momo.

Aquele momento de democratização, politização e efervescência da tomada dos espaços públicos deu vazão à pauta mais urgente de nossas ideologias, a pauta da vida. O carnaval no Brasil já foi cancelado por duas vezes, em 1892 e 1912, na primeira em 1892 a alegação foi pelo lixo gerado durante o período, e em 1912 o Barão do Rio Branco morreu, o governo o entendeu como herói nacional e interferiu na data de realização da festa popular. Sem dúvida o motivo da não realização do carnaval hoje, em 2021, é mais plausível.

Com tudo o que a festa e a manifestação vêm nos dizer é que fica a sensação do desejo de brincar nas avenidas, e também de ocupá-las não apenas em festa, mas em manifestações tácitas. Ir às ruas, quando pudermos, relativizando hierarquias e questionando a ausência de responsabilidades governamentais ainda será uma missão possível. Esses milhões de brasileiros que imaginaram seus blocos botando para ferver, ferverão num caldeirão enorme de avenidas abarrotadas pelo direito à diferença, pelo fim da intolerância, e pela justiça que ainda acreditam. Acredito que já estejamos bem engatilhados. Assim seja! Salve a festa da carne!

***