Líderes da economia no governo parecem ter medo do financismo

A importante vitória de Lula nas eleições de outubro passado gerou uma enorme expectativa de mudança para mais da metade da população, aqueles e aquelas que optaram por enterrar de vez o trágico e criminoso quadro deixado pelo quadriênio em que o bolsonarismo tomou conta do governo federal. O estado de terra arrasada em que o governo do genocida deixou o Brasil – em especial, a sua população mais pobre – está a exigir ações e programas urgentes por parte da nova equipe governamental. Trata-se de criar as condições para se reconstruir o Estado e as políticas públicas e oferecer perspectivas de superação da crise para a grande maioria.

Ocorre que, apesar de ter sido fundamental para o futuro do país, a derrota de Bolsonaro por si só não alterou aspectos intrínsecos de nossa estrutura econômica e social. O quadro de profunda injustiça na distribuição da renda e do patrimônio permaneceu o mesmo após a maravilhosa e emocionante posse do dia primeiro de janeiro. A raiva e o inconformismo dos derrotados no pleito também se fazem presentes ainda, como bem demonstraram as tristes e chocantes cenas dos atentados terroristas perpetrados em Brasília antes e depois do 8 de janeiro. A grande diferença é que agora temos um governo que se pauta pelos valores democráticos, populares e republicanos. Assim, estão sendo retomados os processos contra o trabalho escravo; está sendo executada a expulsão do garimpo ilegal das terras yanomani; e vem sendo dada sequência aos inúmeros processos policiais e judiciais contra os atos de corrupção e arbítrio levados a cabo por Bolsonaro e sua quadrilha. Enfim, estes são apenas alguns exemplos de um amplo leque de inciativas do novo governo.

No entanto, apesar disso, algumas esferas da nossa complexa formação social ainda não foram tocadas. Refiro-me, em particular, aos poderes do financismo em nossas terras. Lula já declarou em alguns momentos que se arrependeu de não ter conseguido promover mudanças substantivas e duradouras em dois domínios nos quais as políticas públicas poderiam ter contribuído para algum tipo de rearranjo de natureza mais estrutural. E costumava mencionar o sistema financeiro e os grandes meios de comunicação. Na verdade, talvez ele tenha percebido que a política de boa vizinhança e do “lulinha-paz-e-amor” não tenham sido suficientes para que as elites brasileiras o aceitassem como legítimo representante da vontade da maioria da população. A tentação golpista reiterada ao longo dos 14 anos em que o PT esteve no governo e a adesão incondicional a Bolsonaro a partir de 2018 são provas cabais de tal comportamento de nossas classes dominantes.

Financismo segue firme e forte

O sistema financeiro segue achando que pode mandar e desmandar, como sempre fez. Essa postura arrogante e de defesa intransigente de sua pauta conservadora entrou em operação antes mesmo da realização das eleições. Depois de perceberem que o flerte com Bolsonaro não teria o efeito que conseguiram produzir em outubro de 2018, os representantes da banca passaram a assediar o futuro governo pelas bordas. Criaram factoides de candidatos a ministros da área econômica e impuseram, mais uma vez, sua eterna agenda conservadora e monetarista. Alguns dos motes seguiam a linha da impossibilidade de se colocar um freio no processo de privatização; da necessidade de se manter a linha da austeridade fiscal a ferro e fogo; que o novo governo não ousasse rever dispositivos da reforma trabalhista de Temer/Bolsonaro; e que a independência do Banco Central não fosse colocada em discussão.

A estratégia de criar um clima de alarmismo e de chantagem, caso suas propostas não sejam adotadas pela equipe de Lula, segue a pleno vapor. Assim tem sido, por exemplo, o debate a respeito da necessidade de revogar o criminoso “Novo Regime Fiscal”, o eufemismo inserido na Emenda Constitucional nº 95, que criou o teto de gastos em 2016. A defesa enérgica do austericídio, levado em frente por parte dos “especialistas” a soldo do financismo, parece que colocou na defensiva os principais expoentes do novo governo na área econômica, que parecem morrer de medo de se opor aos interesses da banca. Ocorre que não há caminho possível para cumprir minimamente o programa com que Lula foi eleito sem tocar nos ganhos fáceis do parasitismo financista e sem romper com as amarras que a austeridade fiscal burra e cega coloca no conjunto da política econômica.

É bem verdade que o governo mal começou, nem apresentou seu balanço dos 100 primeiros dias ainda não completados. No entanto, algumas questões da agenda da Esplanada, já sob nova direção, oferecem elementos de preocupação para quem se coloca na expectativa da mudança necessária. Em especial, vale a pena conferir três itens da pauta em movimento:

  • i) a definição do novo arcabouço fiscal;
  • ii) a relação do governo com a direção do Banco Central e a definição da Selic; e
  • iii) a discussão em torno do crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS.

Austeridade fiscal a todo custo?

No caso da indefinição do pacote fiscal, pode até parecer infantil e ingênuo o jogo de quem acha que pode atender a todas as demandas do sistema financeiro e dos economistas do campo conservador ao mesmo tempo em que busca convencer o presidente da República de que não há outra alternativa que não seja o respeito a uma indefinida responsabilidade fiscal returbinada. A rápida reconversão daqueles que se diziam oposição a Paulo Guedes assusta qualquer analista mais isento. Manter elementos de austeridade em nome de um suposto respeito à reponsabilidade fiscal é trair o resultado das eleições e abrir o caminho para a frustração de parcela importante da sociedade que aguarda por sinais de mudanças.

Os analistas dos grandes conglomerados não escondem seu desejo e apontam para a exigência de uma “âncora”, em lugar do termo “arcabouço” para tratar do novo arranjo fiscal. O assunto seguiu por semanas sendo tratado à boca pequena, sem vazamento para a imprensa. É importante esperar para conhecermos a última versão daquilo que vai ser apresentado ao Congresso Nacional em nome de Lula. Mas pelo que se pode imaginar, a preocupação da equipe da Fazenda é guiada mais por não contrariar o financismo do que em propor uma mudança necessária na abordagem do tema fiscal.

A armadilha de Campos Neto e do Copom

A relação com Roberto Campos Neto segue na mesma linha. Lula não poupou críticas ao nomeado por Bolsonaro para comandar a política monetária, juntamente com os demais oito integrantes da diretoria do órgão regulador e membros natos do Copom. A independência do banco e a novidade dos mandatos fixos de seus diretores funcionam como um sério obstáculo à implementação de uma política econômica voltada para o crescimento e o desenvolvimento. Mas a preocupação do Ministério da Fazenda parece se resumir a não criar nenhuma aresta com o neto de Bob Fields, com a ilusão de que essa postura submissa e de bom mocismo pode provocar alguma redução na Selic. Já houve duas reuniões do comitê responsável pela definição da taxa oficial de juros depois da eleição de Lula.

Em 7 de dezembro do ano passado e em 1º de fevereiro deste ano o colegiado optou por manter a Selic nos estratosféricos níveis de 13,75%. Trata-se de flagrante sabotagem ao governo legitimamente eleito. Dentre outros problemas, Campos Neto representa os interesses do bolsonarismo no interior da nova equipe econômica. É até possível, ainda que improvável, que o Copom resolva demonstrar alguma boa vontade e decida por baixar a taxa 0,25%, por exemplo, na próxima reunião prevista para ocorrer nesta semana. Seria uma mera demonstração cosmética, sem alterar a essência da política monetária. E não adiantaria nenhuma tentativa de festejar por parte de integrantes da linha moderada do governo, pois não há nada a comemorar com esse patamar da Selic.

Mas como avaliam 11 em cada dez economistas não vinculados ao financismo, o fato que importa reter é que esse nível de juros inviabiliza qualquer projeto de desenvolvimento de longo prazo. Em evento organizado pelo BNDES e praticamente ignorado pela grande imprensa, o economista condecorado com o Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, não poupou palavras a respeito dos equívocos de nossa política monetária, mesmo estando junto a representantes do governo e do Ministério da Fazenda.

  • (…) “A taxa de juros de vocês é realmente chocante. Os números de 13,75% e 8% [taxa real] são o que vai matar qualquer economia. O que é impressionante é que o Brasil sobreviveu ao que é uma pena de morte. O que surpreende é que vocês tenham sobrevivido” (…)

Crédito consignado: governo não pode se humilhar

No desenrolar da questão dos juros consignados, mais uma vez fica demonstrado que os interesses do financismo seguem muito bem assegurados por setores deste governo. Tudo começou com uma decisão adotada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) no dia 13 de março. Por iniciativa do ministro da Previdência, Carlos Lupi, o colegiado decidiu reduzir o limite máximo para a taxa na modalidade de crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS. A taxa máxima autorizada para os bancos realizarem tal operação era de 2,14% ao mês e ela passou a ser 1,7%.

A medida começou a ser bombardeada pela grande imprensa e por integrantes do próprio governo, como o ministro-chefe da Casa Civil e o ministro da Fazenda. O boicote orquestrado para inviabilizar a mudança chegou ao ponto de os bancos federais, Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica (CEF), pararem de oferecer tal alternativa de empréstimo a seus clientes, assim como fizeram os grandes bancos do oligopólio privado.

Independentemente dos aspectos da disputa interna por espaço no primeiro escalão, o fato é que chega a ser constrangedor ver ministros de Lula argumentando contra a redução decidida, pois ela seria inviável do ponto de vista dos custos das instituições bancárias. Vergonha alheia completa! Além de não ser verdadeira, a orientação do setor público adota a narrativa da banca privada. A seguir nessa toada, é bem capaz de vermos gente do governo argumentando que não existe espaço para reduzir tampouco para diminuir os tresloucados spreads cobrados nas operações de cartão de crédito ou as elevadíssimas tarifas cobradas pela banca. Afinal, sempre alguém vai encontrar um “estudo técnico isento” escondido no fundo da gaveta para justificar essas práticas espoliativas absurdas.

Caso as taxas debatidas pelo CNPS sejam anualizadas, elas representam uma redução de 29% para 22%. Ora, frente a uma Selic de 13,75%, os bancos não teriam nenhum problema em se acomodar no novo limite. É importante levar em consideração que o crédito consignado do INSS apresenta risco zero para a instituição bancária. Não existe possibilidade de inadimplência nesse caso, uma vez que o pagamento da mensalidade do empréstimo contratado pelo cliente/beneficiário já sai direto do Tesouro Nacional para as contas do banco. Ao contrário do jogo de cena montado contra Lupi, caberia ao governo apoiar a medida e orientar o BB e a CEF a adotarem a linha de frente da modalidade, caso o financismo privado opte mesmo pelo boicote.

O próprio BC oferece respostas para esse ponto em sua página na internet. Há um conjunto de instituições bancárias que já estavam oferecendo crédito consignado a taxas inferiores ao novo limite máximo decidido pelo CNPS. E, obviamente, não estavam perdendo dinheiro com tais operações. Na verdade, o financismo receia que a medida seja um teste para eventual conjuntura mais à frente, onde os bancos federais possam eventualmente ser orientados pelo governo a operar com spreads mais reduzidos do que seus concorrentes privados em todas as suas modalidades de empréstimo. Esse movimento ocorreu durante o governo Dilma e agora a banca resolveu se antecipar e cortar o mal pela raiz (sic).

Lula já disse mais de uma vez que só teria aceitado o desafio de um terceiro mandato porque deseja fazer mais e melhor do que nos outros dois. O presidente sabe que para cumprir tal missão não pode ficar, de novo, refém do financismo. Pois agora precisa dar mostras de que está disposto a tanto. Caso sua intenção seja mesmo a de deixar um legado de desenvolvimento e de redução das desigualdades em nosso país, ele precisa romper, desde já, com as amarras que pretende lhe impor esse pessoal da finança. Para que Lula 3.0 seja mesmo aquilo que os setores da base da sociedade aguardam dele, é preciso deixar de apenas agradar o sistema financeiro e a tecnocracia que pensa como a banca. O governo precisa se voltar de forma urgente aos desejos e às necessidades da maioria.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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