Lula foi preso no dia 7 de abril de 2018, após se entregar à Polícia Federal no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em São Bernardo do Campo. Saiu da prisão em 8 de novembro de 2019, após 10 meses de Bolsonaro no poder. Com Lula ainda preso, a condução já desastrosa do governo no seu primeiro ano gerou a proposta de uma “Frente Ampla” de oposição ao mesmo.

Em 2020, a péssima condução no enfrentamento da pandemia reforçou a ideia. Entre seus principais proponentes, uma explicação das dificuldades em construir a Frente foi consensual: o grande empecilho à criação da mesma seria a intransigência de Lula e do PT, que não queriam aderir a ela. Ainda em agosto de 2019, o sr. Roberto Freire declarava que a principal dificuldade vinha “do PT e partidos satélites” que, aliás, ele considerava os principais responsáveis pela eleição de Bolsonaro.

Essa interpretação durou até novembro, quando Lula foi solto e imediatamente ocupou o centro da cena política de oposição a Bolsonaro. A Frente na qual Lula seria apenas um ator a mais, além de periférico, reconfigurou-se com ele no papel central. Essa nova configuração se consolidou com a atuação doméstica e internacional de Lula, bem como com as sucessivas pesquisas de opinião nas quais ele passou a sustentar até o momento uma confortável liderança. O fato é que temos agora em construção uma “nova” Frente ou, se preferir, uma Frente em outros termos. É muito provável que este cenário político defina o campo da oposição até as eleições presidenciais.

Lula tem se movimentado em várias direções. À população empobrecida, desempregada ou precarizada aferra-se na defesa do atendimento aos seus interesses concretos e imediatos como as transferências diretas de renda, mesmo as francamente eleitoreiras.

Aos trabalhadores sindicalizados vem promovendo uma reinserção das centrais sindicais na vida política extra corporativa, o que não acontecia há muito tempo. Também cumpre papel relevante na campanha pela vacinação e pelas medidas não-farmacológicas adequadas contra a Covid.

No plano internacional, dedica-se a modificar a péssima imagem do Brasil, tendo sido recebido em vários países como um estadista, o que também projeta internamente uma tomada de posição no campo da defesa da democracia.  E, finalmente e não menos importante, procura ampliar sua base de apoio eleitoral com conversas com lideranças de vários partidos localizados não apenas no campo da esquerda do espectro político, mas indo ousadamente além.

Como tudo leva a crer, ao deixar o poder após quatro anos, o governo central revelará a todos um país destroçado: social, econômica, institucional, política e ambientalmente destroçado. Além disso, deixará também uma herança cultural baseada em uma retórica de violência e de ódio que compõe uma ideologia de extrema direita com ramificações internacionais.

Entendo que o processo de reconstrução do Brasil, seja na herança objetiva (sócio-econômica-institucional-ambiental, etc.) seja na subjetiva (a cultura de extrema direita), demandará um tempo que vai além de apenas um novo período presidencial de oposição. Portanto, os movimentos políticos que Lula vem fazendo hoje e que provavelmente continuarão durante toda a campanha, terão que subsistir também durante o seu provável governo e, talvez, além de 2026.

Desde o seu início, duas vertentes de ação política compuseram o projeto do governo Bolsonaro e cada vez mais frequentemente assumiram características competitivas, mutuamente excludentes e mesmo paradoxais[1].

Uma delas é a vertente do bolsonarismo enquanto movimento ideológico, expresso na perspectiva antissistema, na truculência de corte fascista, no combate às abordagens identitárias e numa solução golpista ao estilo tradicional com militares e tanques na rua. Resumindo, uma vertente radicalmente antiliberal de direita, cujo clímax foi a tentativa de golpe de sete de setembro passado.

A outra vertente é de corte neoliberal, que se apoia predominantemente em temas socioeconômicos. Sua expressão mais formalizada está no documento que presidiu o impeachment de Dilma Rousseff e inspirou os dois anos de Michel Temer – a Ponte para o Futuro.

O ponto de encontro das duas vertentes é seu caráter radicalmente demófobo e os liberais da Ponte para o Futuro conviveram harmoniosamente com o bolsonarismo durante o primeiro ano do atual presidente. No contrato desse casamento estavam as reformas e as privatizações. Como elas não vieram com a intensidade desejada pelos neoliberais por causa da ação competitiva das duas vertentes que apontei acima, o casamento entrou em crise. Daí derivou a atual orientação política de Bolsonaro, que é a crescente tutela do presidente pelas correntes parlamentares denominadas genericamente de Centrão.

Lula saiu da cadeia em novembro de 2019. Mais tarde teve suas condenações anuladas pelo STF e seu algoz foi declarado suspeito. Nesse novo enquadramento político, parte dos neoliberais passou a se afastar do bolsonarismo e partiu em busca de um novo porto político-eleitoral que, mais tarde, se convencionou chamar de ‘terceira via’ e que, até agora, não vingou.

É nesse labirinto político que os movimentos de Lula adquirem compreensão e nitidez. Neles enxergo quatro objetivos. O primeiro e mais óbvio é o de obter mais votos, além daquilo que se convencionou chamar de “bolha da esquerda”. O segundo é consolidar sua posição de personagem central na Frente que vai se formando contra o atual presidente. O terceiro é otimizar as condições de governar, no caso de eventual (e hoje provável) vitória eleitoral. E o quarto objetivo, que se reveste de características táticas e limitadas ao tempo de inscrição da chapa, é o de contribuir para desorganizar e confundir o campo dos adversários potenciais. No caso concreto, não apenas o de Bolsonaro, mas também daqueles que ainda não sabem exatamente onde estarão na disputa (Terceira Via). Até agora, esses quatro movimentos têm sido complementares e portadores de grande sinergia e eficácia política.

Foi em 2002 que, pela primeira vez, Lula e o PT compreenderam que era necessário enviar uma mensagem de ampliação além do campo da esquerda para ter sucesso numa eleição presidencial. Para isso, lançaram mão de duas providências. Em primeiro lugar, a escolha de um candidato a vice-presidente de extração patronal; além disso a emissão de uma ‘Carta aos Brasileiros’, na qual foram estabelecidos compromissos com o equilíbrio fiscal atendendo parcialmente à pauta neoliberal.

Chamo a atenção para este outro paradoxo desse fato original na paisagem política brasileira: a eleição para presidente da república de um ex-líder operário e líder de um partido francamente de esquerda ter sido associada (garantida?) a uma concessão ao ideário dos oponentes. Vale também notar que essa conciliação não impediu que a lembrança da experiência dos dois mandatos de Lula tenha se tornado, neste momento, talvez o principal ativo político-eleitoral de sua campanha.

Talvez valha a pena cotejar a situação atual com o que tínhamos em 2002. Importante lembrar que, naquele momento, o país entregue por Fernando Henrique, embora muito fragilizado no plano econômico, legava um ambiente político razoavelmente civilizado, apesar de polarizado como costuma ser em eleições presidenciais. No final de 2022, após quatro anos de truculência bolsonarista, teremos um ambiente político tóxico e possivelmente violento. Mais ainda, a existência dessa “internacional protofascista” atual, inexistente há 20 anos, estará presente no processo brasileiro.

Pensando nem tanto no processo eleitoral, mas nas condições da governabilidade em 2023, há que mencionar as seguintes situações prováveis: o quadro econômico será tão ou mais grave do que o de 2002; o agravamento da desigualdade social e econômica muito mais agudo do que a trajetória gradual, embora constante, do crescimento secular da nossa desigualdade; a desorganização, e por vezes mesmo a destruição de grande número de instituições públicas capazes de enfrentar esses desafios, talvez inédita na história da República.

Portanto, se as eleições e as condições objetivas de governabilidade que dela decorrerem apontarem nessa direção, os quatro movimentos de Lula tornam-se não apenas compreensíveis, mas indispensáveis. E penso que a saída dessa tragédia em que as eleições de 2018 lançaram o país exige que compreendamos o alcance desse labirinto salvador. Não será um caminho ideal, mas o caminho possível.

[1] O paradoxo foi proposto por João Cezar de Castro Rocha em seu ensaio ‘Guerra Cultural e Retórica do Ódio.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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