Mariana Mazzucato falou que não quer a volta ao normal. Pelo menos não àquele “normal” em que o Estado é incapaz de agir rapidamente para enfrentar a pandemia, as crises financeiras, os desequilíbrios climáticos e a exclusão social. Suas palavras foram ditas numa entrevista à BBC. A verdade é que os Estados foram desarmados pelas políticas neoliberais e a pandemia apenas desnudou suas fragilidades.

Ao longo de seu livro de leitura obrigatória “O Estado Empreendedor”, ela avalia o papel da intervenção estatal como indutor dos investimentos privados, principalmente na pesquisa e inovação.

A autora dedica várias páginas para mostrar como a confluência de três vetores contribuiu para o desenvolvimento americano. O primeiro vetor é o incentivo ao desenvolvimento tecnológico, nos mundos públicos e privados. O segundo é a segurança que o Estado oferece ao garantir a demanda para o que for produzido. Por fim, e decisivamente importante, o Estado garante o financiamento do negócio e participa do risco inerente ao empreendimento, mesmo das pequenas startups.

Reafirmando a modelagem tipicamente americana, o governo americano enfrentou a pandemia com a Operação Warp Speed, na qual o Estado impulsionou as empresas privadas a buscarem soluções, garantindo o retorno dos investimentos da Pfizer, Moderna, Johnson & Johnson e das cadeias produtivas relacionadas.

No Brasil, não desejar voltar ao normal possui um significado diferente. Trata-se de repensar um formato de ação estatal capaz de impulsionar um novo ciclo de desenvolvimento, tanto como superação da falência do modelo durante os últimos 40 anos, mas principalmente para criar mecanismos endógenos de inclusão social durante o processo de expansão.

Em alguns setores, o impulso estatal lembra o padrão norte-americano, demandando das empresas obras de infraestrutura, o que contribuiu para a expansão de uma robusta engenharia nacional. No entanto, em geral, a ação estatal brasileira privilegiou a intervenção direta na produção de bens, serviços e no crédito de fomento. Em parte, a escolha refletiu a fragilidade ou desinteresse do empresariado privado nacional, obrigando o Estado a criar um amplo conglomerado de empresas estatais para preencher as lacunas. Ao longo da década de 1950, mas principalmente durante a ditadura militar, este processo deu origem ao Estado Empresário.

O Decreto-lei No. 200, de 1967, regulamentou o Estado Empresário e definiu a Empresa Pública e a Sociedade de Economia Mista. É nele que se revela a principal característica das estatais, sua natureza privada. São empresas controladas pela União, mas dotadas de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio.

O Estado Empresário foi um pilar chave para o sucesso do processo de industrialização do país, que entrou em crise no início da década de 1980. As estatais passaram a apresentar níveis inacreditáveis de endividamento, consequência do uso indiscriminado das empresas para captação de divisas e fechamento do balanço de pagamento do país, sem que estes recursos tivessem qualquer associação aos projetos de investimentos.

Nos anos seguintes, imperou a desorganização macroeconômica, e as estatais continuaram operando em solo movediço, agravado pelos recorrentes chamados do governo para contribuir com as políticas de ajuste macroeconômico. A quebra de muitas empresas foi o corolário desta história que, combinada com a expansão das ideologias neoliberais, resultou nas privatizações durante os governos de Fernando Henrique Cardoso.

No setor financeiro, houve a privatização da maioria dos bancos estaduais, ao lado de políticas de recuperação dos principais bancos federais, que receberam injeções significativas de capital. O aperfeiçoamento dos marcos regulatórios delimitadores das relações entre os sete bancos estatais e o governo criou um ambiente saudável para a recuperação deles como instrumentos importantes para intervenção estatal no processo de desenvolvimento.

Uma das mais importantes mudanças na governança foi a regulação dos vasos comunicantes entre os recursos próprios das empresas – por definição, para uso numa lógica essencialmente empresarial, dos recursos públicos orçamentários transferidos para que as estatais operem políticas de fomento e crédito em nome do governo. O BNDES e a FINEP, para o fomento e financiamento à inovação, o BB para políticas de crédito ao setor de agronegócios e de exportação e a CEF, em programas habitacionais, de saneamento e sociais.

As 39 estatais do setor não financeiro, no entanto, não passaram por este aperfeiçoamento nos padrões de governança. Embora seja um tema instigante para ser aprofundado, não é o propósito deste artigo. Existe um ponto anterior a este que merece ser trazido para o debate. Na verdade, o setor produtivo estatal hoje não será capaz de repetir seu papel de ponta de lança rumo a um novo ciclo de crescimento, como sugerem alguns formuladores de políticas para o desenvolvimento.

Conforme estudo do DIEESE, ao longo das duas primeiras décadas do século 21, a média anual de investimentos das estatais ficou abaixo de 1,5% do PIB, cerca de R$ 90 bilhões/ano – o pico ocorreu entre 2010 e 2014, quando atingiu 2% do PIB.

O dado mais revelador mostra que do total investido, 90% foram feitos apenas por uma empresa, a Petrobras, percentual que atinge 95% se agregarmos o grupo Eletrobras. Por este prisma, é fácil identificar a ilusão de supor que o setor produtivo estatal seja capaz de liderar um arranque para um novo ciclo de desenvolvimento.

Mas a radiografia do setor produtivo estatal revela ainda outros aspectos a serem considerados para a formulação de políticas econômicas. Das empresas não financeiras sob controle direto da União, quase metade delas (19) depende de recursos orçamentários para cobrir suas despesas de custeio, mais um indicador que reforça a fragilidade do setor estatal como liderança de um novo ciclo, embora muitas empresas possam ter papéis importantes em outros sentidos, como do desenvolvimento tecnológico, por exemplo.

Escapa totalmente às intenções deste ensaio esgotar o assunto, mas cabe destacar pelo menos uma diretriz para o debate. Com base no que foi dito, está na hora do Brasil esquecer a opção de um novo ciclo liderado pelo retorno a um grande Estado Empresário interventor direto na produção de bens e serviços.

Neste sentido, neste pequeno ensaio se sugere mudar a perspectiva da intervenção estatal no Brasil. Num esforço de síntese, a ideia é aprimorar a ação do Estado brasileiro nas suas funções exclusivas e onde ele há muito tempo não é forte: no planejamento, na formulação de políticas industriais e de inovação, nas práticas de governança e gestão, na construção de marcos regulatórios e na regulação, nas políticas de concessão de serviços públicos e parcerias público-privadas. Pensar à frente impõe fazer do Estado, de fato, o grande agente indutor do desenvolvimento socialmente inclusivo e sustentável.

Quanto ao Estado Empresário, embora não se vislumbre uma retomada da força anterior, permanece necessário dar continuidade ao projeto de aperfeiçoamento da governança corporativa das empresas estatais, processo iniciado no governo Lula com a edição do Decreto No. 6.021/2007, que “Cria a Comissão Interministerial de Governança Corporativa e de Administração de Participações Societárias da União – CGPAR”. Nele, foram esboçadas as primeiras diretrizes para regulamentar as relações entre o Estado, governo e empresas estatais, que com algumas mudanças deram origem à Lei 13.303/16 – Lei das Estatais.

Chama atenção que a melhoria nas práticas de governança não seja tratada como um destaque pelo Partido dos Trabalhadores, pai desta iniciativa no Brasil. Setores da esquerda ainda não compreenderam as ideias inovadoras da governança das estatais.  Uma coisa é indicar melhorias necessárias à Lei das Estatais, outra é querer mudar sua essência que é aumentar a governança das estatais. O PT precisa deixar sua posição mais clara e reconhecer o papel que a  Lei teve na defesa das estatais contra os ataques destruidores de Bolsonaro.

Neste sentido, os recentes acontecimentos no Brasil impõem pensar um pouco além, e organizar um órgão próprio de Estado – não de governo – dedicado ao cumprimento de uma das principais diretrizes de governança corporativa das empresas estatais sugeridas pela OCDE, que é o aperfeiçoamento da função de “proprietário informado e ativo, garantindo a governança das estatais de uma forma transparente e responsável, com um elevado grau de profissionalismo e efetividade”.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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