Primeira Parte

Muitos perguntam os porquês do sucesso mundial do Diário de Anne Frank, um livro escrito durante o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Traduzido em 70 idiomas com uns 40 milhões de livros vendidos, tema de filmes e peças de teatro. Editado em 1947 levou alguns anos para conquistar o público, e, aos poucos, algumas personalidades e escritores perceberam que o diário não era só de uma adolescente, mas sim o de uma escritora jovem. Anne ganhou de presente o caderno que escreveria seu diário no dia do aniversário de 13 anos, 12/06/1942.

O humor de Anne Frank

Uma das primeiras histórias do livro é a do professor de Matemática que passou a redação de castigo a ela por falar muito: “Uma tagarela”. Anne escreveu três páginas argumentando que falar era uma característica feminina, tentaria se controlar, mas sua mãe falava tanto ou mais que ela. O professor riu, mas ela seguia falando, e então deu outra redação: “Uma tagarela incorrigível”. Ela fez e seguiu falando, logo recebendo uma terceira redação: “Quac, quac, quac, tagarelou e dona pata”. Riram na aula, ela também, mais aí pensou que devia fazer algo diferente e pediu ajuda à sua amiga Sanne para escreverem em versos. Fizeram um poema sobre uma mãe pata e um pai cisne com três patinhos que grasnavam muito e foram bicados até a morte pelo pai. O professor gostou tanto que leu o poema em várias salas de aula.

Anexo Secreto

No dia 09/07/1942 Anne e sua família se esconderam, pois os judeus estavam sendo presos por serem judeus. No diário, descreve o sofrimento dos judeus, pois deviam usar uma estrela amarela, proibidos de andar nos bondes, carros, comparecer aos teatros, cinemas entre outras proibições. Esse espanto de Anne leva à pergunta ainda viva de como foi possível o nazismo que buscou matar todos os judeus da Europa. Parêntesis: poucos traçaram um painel mais amplo dos porquês do assassinato de seis milhões de judeus que o historiador Saul Friedländer, em seu livro “A Alemanha nazista e os judeus”. No dia 21 de setembro escreveu: “Atualmente papai e eu estamos trabalhando em nossa árvore genealógica, e ele me conta alguma coisa sobre cada pessoa”. Seus antepassados marcaram a vida na comunidade judaica e na Alemanha.

Ler e acompanhar a vida de uma adolescente, através de seu diário, é conviver com medos, sonhos, suas transformações na luta contra a solidão. Já tinha escrito no diário sobre a experiência de escrever: “o papel tem mais paciência do que as pessoas”, e inventa uma amiga imaginária que chamou de Kitty, para quem passa a escrever.

Descreve as tensões e discussões com sua mãe Edith, e a irmã Margot que era mais amiga da mãe que dela. Elogia seu pai escrevendo que é o “mais adorável que já vi”, era o que mais tinha paciência com sua aceleração criativa.

Nelson Mandela, prêmio Nobel da Paz e presidente da África do Sul disse que Anne Frank é a prova da invencibilidade do espírito humano. Durante os 18 anos que passou na Ilha de Robben exortou seus companheiros de prisão a lerem o diário. Quando as páginas do único exemplar do livro na prisão começaram a cair, os presos se revezaram, clandestinamente, a copiar o livro à luz de velas. Todos os presos leram o “Diário de Anne Frank”, de como uma jovem viveu dois anos escondida no sótão de uma casa.

Muitos anos depois, em 1994, Mandela foi homenageado pela Fundação Anne Frank, e visitou a Casa de Anne Frank. Antes, em um discurso para uma multidão em Johanesburgo, relembrou ter relido o livro enquanto estava na prisão, com o qual afirma ter “extraído muito incentivo” na luta contra o “apartheid”. Comparou a luta contra o Nazismo com a travada contra o Apartheid, expressando que ambas “são crenças evidentemente falsas, sempre serão desafiadas por pessoas como Anne Frank e estão fadadas ao fracasso”.

A casa na qual o diário foi escrito hoje é um museu visitado por 1 milhão e 200 mil pessoas anualmente, mais de 3 mil por dia. Visitei a casa de Anne Frank em fevereiro de 1968 num inverno rigoroso em Amsterdam, com um grupo de estudantes do Colégio Israelita Brasileiro. Chegar ao Canal Prinsengracht número 263 é emocionante, entrar na casa, subir os degraus de dois andares por corredores estreitos, até ultrapassar uma biblioteca atrás da qual se escondia o anexo secreto. Oito judeus viveram dois anos em 56 metros quadrados, e pude ver tudo que é descrito no livro, sentindo emoções e tensões que agora recordo.

Minha maior curiosidade era conhecer o lugar onde foi escrito o diário, o sótão da casa, que se chega após subir uns dez degraus de uma pequena escada íngreme. Só se podia olhar o amplo espaço do último degrau, e ver uma janela inclinada, a única que não tinha cortina e da qual Anne podia ver uma grande árvore – uma castanheira – os pássaros, o céu, as nuvens, onde sonhava com a liberdade. (Publicado na ZH de 11/06/2022)

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Ilustração: Mihai Cauli

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