No finzinho de fevereiro, há cerca de três semanas, reuniu-se em São Paulo a chamada “trilha financeira” do G20. O G20 atualmente se organiza em duas esferas básicas de discussão e decisões: a chamada “trilha dos sherpas” (os sherpas são normalmente ligados à área diplomática e aos representantes diretos dos chefes de governo e, portanto, responde pelos chamados “líderes” dos países) e a trilha financeira, onde se reúnem ministros de Fazenda/Finanças e presidentes de bancos centrais dos países-membros.
A estrutura e lógica de discussões no G20 é bem própria, já que o grupo foi se constituindo na prática, então tem muitas particularidades. Por isso, sugiro fortemente que os que queiram entender inclusive o “jargão” do G20, toda a linguagem bem própria do grupo, que recorram ao excelente trabalho disponibilizado pelo Brics Policy Center, instituição brasileira que acompanha esse tema, entre outros.
A chamada “trilha financeira” – as discussões entre as autoridades monetárias e financeiras dos países – está na própria origem do G20, constituído para administrar as crises financeiras dos anos 1990 (entre as quais as brasileiras, no período em que o governo Fernando Henrique literalmente “quebrou” duas vezes do ponto de vista do balanço de pagamentos, em 1998 e em 2002). Esse fórum de autoridades monetárias e financeiras foi ampliado com a crise econômica e financeira de 2007/2008 para o chamado “G20 dos líderes”, capitaneado pelos chefes de governo (e daí a chamada “trilha dos sherpas”) na medida em que a crise desse novo período foi avaliada como sendo de complexidade superior à capacidade das autoridades monetárias e financeiras de resolver, requerendo decisões de natureza política que só os chefes de governo poderiam tomar.
A pauta central da discussão, sobre a qual parecia haver razoável consenso na reunião de São Paulo, dizia respeito a uma agenda de discussão sobre a cooperação entre os países (e instituições que assessoram e apoiam o G20, como FMI e OCDE, por exemplo) sobre a questão de tributação (impostos) internacional, e inclusive uma proposta do Brasil sobre a tributação de riquezas, a que aparentemente ninguém formalmente se opôs.
No âmbito da OCDE (instituição da qual o Brasil não é membro, mas participa das discussões, assim como outros países do G20, como China e Índia, entre outros), existe um acordo sobre o que se denomina Imposto Mínimo Global, e que se sustenta em duas “pernas”: uma primeira voltada para “distribuir” de alguma forma os direitos de tributação internacional entre os países, e uma segunda estabelecendo o recolhimento de ao menos 15% do imposto sobre a receita de corporações transnacionais que possuam um volume de negócios global anual superior a 750 milhões de euros. Independente dos detalhes, o fato de existir algum consenso sobre a proposta é bastante positivo, e pode representar um importante vetor (essa é a principal preocupação brasileira, expressa pelo atual governo) para o financiamento de políticas internacionais contra a fome e a pobreza, que é uma das principais questões colocadas na pauta pelo governo brasileiro para o G20 desse ano, em ambas as trilhas.
Entretanto, a reunião da chamada “trilha financeira” não chegou a um “comunicado” final (“comunicado” é a forma de expressão das deliberações da reunião). Isso porque as questões geopolíticas relativas ao conflito na Palestina, com a matança levada adiante pelas forças de segurança de Israel, e especialmente as questões relativas à guerra na Ucrânia voltaram a ter seus conteúdos propostos para serem incluídos no texto. Como sobre isso não há consenso, essa tentativa de inclusão inviabilizou que se chegasse a uma redação final do “comunicado”, apesar da insistência das autoridades brasileiras presentes na reunião, em especial o ministro da Fazenda Fernando Haddad, que esses temas deveriam ser tratados na “trilha dos sherpas”, pelos diplomatas, e não no debate de temas financeiros. Em todo caso, os representantes do Brasil e outros países que tinham visão semelhante não parecem ter sensibilizado o conjunto dos representantes de países presentes – e aqui, vale apontar que as deliberações no espaço do G20 são tomadas por consenso.
As mudanças geopolíticas no mundo, implícitas nas discussões sobre os conflitos militares em curso, continuarão sendo a principal questão do G20, como vêm sendo desde 2022. Esse é um tema que aparece de forma recorrente, e contra o qual o Brasil (e suas autoridades) terá que jogar toda a sua capacidade diplomática e negociadora para conseguir chegar a um termo, e para que a reunião, que pode ser extremamente importante, não veja sua declaração final inviabilizada. Como se viu no tema da “trilha financeira”, ele era extremamente importante para tentar resolver na prática importantes problemas, como a fome e a pobreza, mas também problemas gerais de arrecadação, para todos os países. Assim, vamos acompanhar ao longo desse ano de G20 no Brasil como essas discussões evoluem, e se de fato conseguiremos chegar a um bom termo, ou se vamos nos defrontar com um grande impasse.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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