Pobreza e lixo

Há no mundo gente que chegou lá. Lá onde vivem é chique. Tem gente cheirosa, vestida e investida em beleza. Gente que a gente chama de gente bonita mesmo quando é feia. Bonita de beleza embelezada. Comprada, plasticizada, corrigida, dermatologizada, cremosa e unguentada dos mais milagrosos, raros e caros bálsamos e fórmulas. Gente que dá duro para ser invejada.

Philippe já nasceu lá. Sempre foi e continua sendo como os demais de sua gente. Pensava conhecer bem a vida, as pessoas e o mundo porque viajou para muitos lugares exóticos. Mas para seu espanto, foi no seu bairro que encontrou uma realidade desconhecida.

Foi entre as ruas charmosas de seu bairro que conheceu a miséria. Já tinha visto pobre, claro! Apesar de quase sempre passar por eles como quem não os vê. Às vezes, nem via mesmo. Ou só reparava em seus carros fumacentos de remendos improvisados porque achava graça. Agora era diferente. Não tinha graça. Não eram pobres. Eram miseráveis.

Trepada na caçamba de um caminhão de lixo, uma menina magricela de indefinida juventude vasculhava os restos e podridões de gente como Philippe. Uma mulher mais velha e não menos pobre, que parecia ser mãe da franzina, a ancorava pela cintura para que não mergulhasse e desaparecesse na podridão. Havia outros. Mais gente do que a boca suja do caminhão comportava. Engalfinhavam-se por espaço tão freneticamente que na refrega a menina quase desgarrou da velha.

Na calçada, outros consumiam o butim. Restos de carne em cabeças de peixe, ossos de galinha e nacos de gordura esverdeada. Restos de legumes disformes e verduras amareladas. Frutas mordidas, deformadas e malcheirosas, completavam o banquete repulsivo devorado com um misto de ânsia faminta e meticulosidade para arrancar cada milímetro do que pudesse sustentar um corpo.

Os do bairro olhavam com algum espanto e muito nojo. Uma moça em roupas justas de ginástica fez cara de vômito e deu meia volta. Um cão mais cheiroso e nutrido que aqueles miseráveis, talvez por excitação, latia incansavelmente. Uma idosa de pele lisa e brilhante assistia com expressão indefinida, mais pela incapacidade da face embelezada demonstrar emoção que por frieza de espírito. Um sujeito engravatado olhava desatento enquanto falava alguma coisa em inglês aos fones enfiados nos ouvidos como brincos.

A polícia não demorou a chegar. Porque por ali, nunca demora. E sempre aparece quando gente perigosa aparece. Com dureza, policiais dispersaram o repasto. Ficaram por ali, com caras amarradas para manter a miséria desordeira no seu lugar, longe dali.

Em pouco tempo, não havia mais evidência da cena. Sem miseráveis à vista e restos dos restos recolhidos por zelosos serviçais, as pessoas dali voltaram a zanzar com suas caras cordiais e sorrisos de alinhados dentes brancos.

Mesmo à noite, depois de um dia de distrações, a imagem da menina franzina ainda atormentava Philippe. Não entendia o bem o que sentia. Havia tristeza, claro, mas tinha algo mais. Um apertar diferente no peito. Um troço que sufocava. Um je ne sais quoi! Buscou tranquilidade na adega. Tomou uma taça de La Romanée Grand Cru. Depois outra. E outra. Arrematou com uma dose de Richard Rennessy Xo, porque precisava de algo mais hard. Deitou-se zonzo e ainda confuso. Sem saber porque não conseguia chorar.

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