O envio atabalhoado da PEC do desespero pelo governo ao Congresso Nacional escancara, sem nenhum traço de vergonha, as tentativas de última hora de um candidato que deixa transparecer sua aflição com a proximidade das eleições. As pesquisas de opinião e de intenção de voto insistem em colocar Lula no primeiro lugar da preferência do eleitorado, inclusive apontando a possibilidade de que a disputa para a Presidência da República se resolva já no primeiro turno.

O movimento de Bolsonaro em direção ao colo do Centrão já vem de muito tempo atrás. Começou com a campanha explícita que o ocupante do Palácio do Planalto fez a favor dos candidatos ao comando da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Ele foi vitorioso com a chegada de Arthur Lira (PP/AL) e Rodrigo Pacheco (DEM/MG) à presidência das duas casas do legislativo no início de 2021. Em seguida, ofereceu o principal cargo de seu ministério a Ciro Nogueira (PP/PI), expoente máximo do fisiologismo, que passou a dirigir a Casa Civil em julho do ano passado. Ao jogar na lata do lixo sua falaciosa promessa de levar a cabo uma “nova forma de fazer política”, Bolsonaro joga as suas fichas na busca de alguma capacidade de sobrevivência até o começo de outubro, tentando criar condições de levar o pleito para ser definido no último domingo daquele mês.

A aliança com os personagens políticos do Centrão pressupõe uma relação de dependência mútua. Os parlamentares exigem verbas, cargos e outras benesses, em troca de oferecer ao governo alguma garantia de tranquilidade na aprovação de medidas de interesse do mesmo no Congresso Nacional. Além disso, parece óbvio, é de se esperar que haja algum tipo de engajamento na campanha do candidato à reeleição presidencial. Ocorre que nem mesmo essa contrapartida está plenamente assegurada, uma vez que Lula apresenta uma vantagem considerável nos estados do Nordeste, por exemplo. Assim, espera-se algum grau de traição, uma vez que o perfil do político profissional fisiológico não bate muito com alguém disposto a cumprir os acordos para caminhar rumo a uma provável derrota nas urnas.

Centrão e tenebrosas transações

O Centrão é bastante conhecido em sua preferência por governos fracos e encurralados, pois assim consegue aumentar os preços por seu apoio no mercado secundário das trocas fisiológicas. No caso atual, o grupo conseguiu articular a mais completa apropriação privada de recursos públicos às escuras de que se tem conhecimento na História republicana. A novidade veio sob a denominação genérica de Orçamento Secreto. A disputa sobre o comando dos valores orçamentários teve um de seus primeiros arranjos mais “profissionais” de assalto ao fundo público logo depois da aprovação da nova Constituição. Ao longo da primeira metade da década de 1990, em meio ao processo de impeachment de Fernando Collor, foi denunciado o chamado “escândalo dos anões do Orçamento”. Mas, desde então, pouca coisa mudou na essência das transações. Apenas tratou-se de aperfeiçoar e tornar mais sofisticados os instrumentos para viabilizar os desvios.

Os parlamentares mais marcados por sua ganância em aprovar emendas destinadas a despesas em suas áreas de atuação e dispostos a negociar seu poder de influência na tramitação da matéria orçamentária passaram a disputar com maior vigor os cargos na poderosa Comissão Mista do Orçamento (CMO) do Congresso Nacional. Composta por integrantes da Câmara e do Senado, o colegiado elege um presidente e um relator, bem como sub-relatores temáticos e regionais. Afinal, os valores trilionários das rubricas a serem aprovadas chamam a atenção e atiçam o apetite dos mais gulosos. A peça de 2022, por exemplo, apresenta um total de R$ 5 trilhões de despesas. A criatividade dos malfeitores deve se restringir a alguns itens desse total, mas ainda assim não se deve subestimar, por exemplo, os quase R$ 2 trilhões que compõem apenas o Orçamento Fiscal.

Emendas bilionárias e secretas

Como a dinâmica de tramitação e aprovação da Lei Orçamentária é longa e complexa, o fato concreto é que a figura do relator da matéria acabou concentrando um grande poder de decisão em suas próprias mãos. Com o aprofundamento da política de austeridade fiscal ao longo dos últimos 20 anos, o foco passou a se concentrar nas emendas parlamentares. Havia um acordo implícito de que o Executivo não contingenciaria nem deixaria de executar/repassar os valores para esse tipo de despesa. Havia as emendas individuais e as emendas de bancada (temática ou regional), onde os interesses paroquiais dos parlamentares eram bastante contemplados.

Mas a entrada em cena da aliança do bolsonarismo com o fisiologismo, em ambiente de maior austeridade no controle de gastos comandada por Paulo Guedes e sob a ameaça do EC nº 95, permitiu um salto de qualidade no assalto aos cofres públicos. Dessa forma, entrou em cena a novidade das tais “Emendas do Relator”, não mais sujeitas aos limites de valores impostos às demais emendas. O ambiente era de uma intensa negociação de bastidores para que o responsável pelo comando das emendas apresentasse em seu nome valores bilionários para seus correligionários. Desnecessário dizer quais eram os mais bem agraciados nessa partilha do butim, a partir da aceitação da prática de tais emendas que, além de tudo, passaram a ser secretas desde 2021. Com o aval do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) para legitimar o novo fenômeno, nada mais poderia ser feito para evitar o escândalo.

Na verdade, a busca pela garantia de um carimbo de “secreto” para as destinações, os valores, os autores e os beneficiários de tais emendas já porta consigo mesmo o manto da suspeição. Não existe nenhuma razão aceitável que possa justificar essa tentativa de impedir que a opinião pública, as forças políticas e as instituições de forma geral tenham acesso livre a esse tipo de informação, que deveria ser transparente. Se não desejam que as emendas sejam de conhecimento público é porque existe algum tipo de transação irregular, imoral, antiética ou mesmo ilegal por trás das mesmas.

Bolsonarismo e fisiologismo se merecem

Historicamente, a ideia de atribuir ao parlamento o poder de compartilhar com o Poder Executivo as decisões a respeito do orçamento público vem das origens da monarquia britânica. Em resposta à tirania dos reis em impor tributos e alocar os recursos ao seu bel prazer, criou-se um movimento para que um outro poder, legislativo no caso, também tivesse presença e participação nesse processo. Ao longo dos séculos e dos continentes, as diferentes experiências de preparação, de votação e de execução dos orçamentos nacionais sempre foram objeto de polêmica e disputa política. Mas no caso brasileiro atual, o cenário é que uma parte do poder legislativo tenta arvorar para si o direito de estabelecer as prioridades, sem nem mesmo prestar contas à sociedade do tipo de destino que pretende oferecer aos valores do orçamento público. Uma completa inversão de valores e de ausência de legitimidade.

Na verdade, esse tipo de prática combina de forma cristalina com as orientações oferecidas por Bolsonaro para os malfeitos de seu próprio governo. Ao recuperar as origens dos tiranos absolutistas do “o Estado sou eu” e “depois de mim, o dilúvio”, o aspirante a ditador tupiniquim pretende esconder dos registros da História os atos promovidos por ele e por sua “famiglia” ao longo dos quatro anos de exercício de seu mandato. Foi assim que passou a ser uma rotina, tragicamente normalizada pelos grandes meios de comunicação, a classificação como sendo de “sigilo oficial por 100 anos” atos e decisões de rotina de seu governo.

A lista de fatos classificados com tal impedimento de acesso público é longa:

  1. nomes de servidores que postavam nas contas de redes sociais de Bolosonaro;
  2. cartão de vacinação de Bolsonaro;
  3. participação do ex-ministro da Saúde General Pazzuelo em ato partidário;
  4. acesso dos filhos Carlos e Eduardo ao Palácio do Planalto;
  5. matrícula da filha em Colégio Militar em Brasília;
  6. reuniões com pastores – escândalo do MEC.

Decretos: revogar o sigilo centenário

Bolsonaro citou a Lei de Acesso à Informação para editar tais decretos e buscar refúgio na revelação de atividades ilegais. No entanto, a própria legislação citada não autoriza esse tipo de imposição de sigilo, a não ser em casos em que seja considerado “imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado” (art. 23). Nas situações envolvendo o próprio chefe do Executivo ou seus familiares, o texto estabelece que “as informações que puderem colocar em risco a segurança do presidente e vice-presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição”. (art. 24). Ou seja, jamais se aplicaria o segredo centenário a tais casos.

Lula já foi aconselhado por sua assessoria jurídica a esse respeito e afirmou que não vai manter tais decretos, claramente inconstitucionais. Sigilo de 100 anos e segredo para as emendas bilionárias dos parlamentares são compostos do mesmo material genético. Ambas as práticas deveriam ser revogadas em um cenário onde o Brasil tenha retornado ao trilho da democracia e da soberania popular.

O receio de ser derrotado nas eleições – e com isso perder o foro privilegiado – parece estar atormentando as noites de insônia do candidato à reeleição. O receio de verem desnudadas as tenebrosas transações envolvendo o mau uso dos recursos públicos parecem também perturbar o sono dos parlamentares. Assim, tanto uns quanto o outro, recorrem ao artifício antirrepublicano e antidemocrático do carimbo do sigilo centenário.

Enfim, tudo isso evidencia que bolsonarismo e fisiologismo se merecem. São feitos da mesma matéria putrefata, que tanto mal tem causado ao Brasil e ao seu povo. Outubro vem aí e as oportunidades de dar um basta a esse quadriênio desastroso estão ao nosso alcance. Os obstáculos ainda são muitos e o grupo que se encastelou no poder e dele se beneficiou desde o início de 2019 não vai devolver a faixa de forma tranquila. Tão ou mais difícil do que ganhar nas urnas, vai ser assegurar a posse de Lula. E daí, só a partir de então, é que terá início uma outra empreitada ainda mais complexa. Trata-se de reconstruir tudo aquilo que foi posto abaixo e unir a maioria da nação em torno de um projeto de desenvolvimento social, econômico e ambiental que todos almejamos e merecemos.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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