Nesta última terça-feira cinco de dezembro, as redes sociais foram invadidas por vídeos de supostos moradores andando pelas ruas caçando assaltantes, autodonominados Justiceiros de Copacabana. Das redes, em minutos, as imagens ganharam os noticiários da imprensa.  É sobre este fenômeno o áudio de 10 minutos de um dos maiores pesquisadores sobre de segurança pública, José Claudio Souza Alves, um colaborador do Terapia Política.

Como o professor menciona, os episódios recentes têm uma longa história, que remonta aos anos 1970. Na verdade, este é mais um episódio que dá sequência a tantos outros, como o dos dias de terror vividos na zona oeste do Rio de Janeiro, quando ônibus foram explodidos e bandos armados circulavam ameaçando as pessoas. Na época, os fatos foram explicados como sendo uma reação ao assassinato de um miliciano. Poucos dias depois, José Cláudio alertou que as sequências de manifestações violentas, algumas mais divulgadas do que outras, precisam ser vistas como uma “obscura trama entre as milícias, outras formas de crime organizado e a estrutura de Estado”. As milícias surgiram de uma “ruptura com uma prática que existia anteriormente”.

A seguir, reproduzimos trechos da entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos IHU, na qual o professor explicou o rompimento de um dos nós da rede de milícias e estruturas estatais. Segundo ele, foi inaugurado um novo capítulo: “Os milicianos alcançaram uma compreensão do seu papel no jogo todo e uma recusa de se tornarem as vítimas exploradas pelo discurso político hegemônico. Eles estão ganhando uma consciência diferenciada”. Vale ler a entrevista completa, que pode ser acessada clicando no link que colocamos no final deste artigo.

Entrevista concedida  a João Vitor Santos e Patricia Fachin da Revista Instituto Humanitas Unisinos

IHU – Como o senhor analisa os atentados ocorridos na cidade do Rio de Janeiro no início desta semana, mais especificamente na segunda, dia 23-10-2023?

R: Tudo indica que essas manifestações milicianas partem de uma ruptura com uma prática que existia anteriormente. É possível constatar isso quando analisamos a operação da Polícia Rodoviária Federal – PRF e da Polícia Civil em conjunto, em outubro de 2020, nas vésperas das eleições municipais daquele ano, ocorridas em novembro.

Eles fizeram 17 mortos em duas operações em Nova Iguaçu e Itaguaí. As mortes são de pessoas dessa milícia que nós estamos vendo agora. Na época, não houve essa resposta, essa reação da milícia. Mas, um pouco mais de dois anos depois, o que nós temos é uma resposta muito mais intensa, mais dura e mais ampla. É como se dissessem: “nós não aceitamos pagar o preço dessa estrutura de segurança pública”.

É uma estrutura de segurança pública que se transforma, que constrói as execuções, as mortes, os assassinatos como forma de a política solucionar os problemas. Eles estão dizendo de uma forma muito contundente que não querem “pagar esse pato”. Estão dizendo também que eles controlam esses territórios e, logo, se houver ataque à organização criminosa neste território, vão expor esse território ao terror.

É esse o grande recado, um recado eminentemente político. A estrutura miliciana se fortalece mesmo com as mortes, com as operações, com as prisões. Isto prova uma hegemonia dentro do cenário da segurança pública, baseada em confrontos, mortes, a máxima de que “bandido bom é bandido morto” e de guerras. Estas ações não têm gerado a solução do problema, pelo contrário, estão intensificando o problema. Por que isso? Porque você não está indo na raiz da questão.

IHU – Quem era o miliciano morto na zona oeste do Rio? Por que este assassinato desencadeou uma explosão de violência? Que relação os ataques desta semana têm com o episódio de 2020, quando a PRF e a Polícia Civil mataram 17 pessoas em Nova Iguaçu e Seropédica?

R: Como falei acima, há uma cadeia sucessória dentro dessa milícia, chamada Liga da Justiça, o antigo Bonde do Ecko, que constituiu o poder de uma família, que é a família Silva Braga. Esteve no comando o Carlinhos Três Pontos, depois o Ecko e agora você tem o Luiz Antonio, o Zinho. Esse sujeito que foi morto [Matheus da Silva Rezende, miliciano conhecido como “Faustão”, morto em operação policial na segunda, dia 23-10-2023] é o sobrinho do Zinho.

A morte dele é a morte de uma liderança construída para ser o sucessor nessa estrutura de grupo armado. Por isso, a organização está dando, como já falei, uma resposta diferente à que foi dada em 2020. Em outubro de 2020, quando 17 milicianos foram assassinados em uma operação conjunta da PRF e da Polícia Civil. Agora, estão dizendo que não vão aceitar que sejam as vítimas, os mortos, os assassinados nessa estrutura toda.

Esta também é uma estrutura que conta com a presença fundamental e essencial tanto da estrutura de segurança pública do Estado como da estrutura do próprio Estado, com a presença de seus representantes no Legislativo, Executivo e Judiciário. Esses vários segmentos que compõem o Estado têm seus interesses colocados nesses territórios a partir do controle territorial armado, do controle econômico e do controle político que a milícia estabelece nessas regiões, nessas localidades.

Mexer as peças do jogo político

Os poderes constituídos transformaram a estrutura miliciana numa estrutura de benefício, obtenção de ganho e perpetuação do seu poder nessas regiões. Então, como nós estamos nas vésperas das eleições, há uma sinalização por parte do governo do Estado na direção de um endurecimento. A indicação do delegado Marcus Amim para a Secretaria de Polícia acontece a partir de um casuísmo, pois eles mudaram a legislação da lei orgânica das polícias no Rio de Janeiro para emplacar o nome dele: mudaram o tempo que um policial tem que estar trabalhando como delegado em função dos interesses dos deputados estaduais. Anteriormente, você tinha que ter 15 anos como delegado para poder assumir a chefia da Secretaria de Polícia Civil. Hoje, apenas com 12 anos, que é o caso do Marcus Amim. Foi essa a mudança que fizeram.

Ele é o cara que esteve à frente da chacina do Jacarezinho. Ele é o cara que propaga a lógica do “bandido bom é bandido morto”, a lógica bélica de assassinato dos que eles chamam de bandidos. Ou seja, isso é interessante em termos políticos e eleitorais, e essa mudança ocorre agora em função do jogo de interesse na Assembleia Legislativa, com os executivos municipais e tudo mais. O que está em jogo é para o ano que vem, e a estrutura miliciana está dizendo: “nós não vamos entrar com uma bucha de canhão a ser morta para pagar esse pato, nós queremos uma outra configuração desse acordo”.

E essa é a resposta, por isso ela é tão dura, por isso ela é tão alta. Eles percebem que esse caminho é o caminho que está sendo adotado no Estado do Rio de Janeiro.

Essa é a trilha que o governo do Estado quer seguir, que na verdade é uma grande trilha de apagamento, de ocultação, de mascaramento das verdadeiras raízes da estrutura miliciana. Na verdade, estas são raízes econômicas, são raízes políticas, são raízes de controle territorial muito mais profundas e que fazem com que essas instituições que queiram ter vantagens entrem e mergulhem nessas relações com a milícia como algo vantajoso e de projeção político-eleitoral.

Em busca da perpetuação do poder

Diante destes fatos, vemos que a milícia quer uma outra reconfiguração. O Zinho, como liderança, quer uma outra reconfiguração. Ele quer a sua sobrevivência, a sua perpetuação. Esse é o grande recado que ele está dando. As milícias que estão hoje na zona oeste do Rio, a Liga da Justiça, também se estende pela baixada fluminense. Ela vai pegar Itaguaí, Seropédica e Nova Iguaçu. Ou seja, essa é a maior milícia que nós temos.

Só que há outras milícias com bastante poder que têm controle de outros municípios. Por exemplo, as milícias que se organizam em Belford Roxo, um município com 500 mil habitantes. Lá, as milícias que se organizam a partir de Queimados, um município menor, já com cento e poucos mil habitantes, mas também tem um peso nesse cenário, são milícias importantes de controle territorial, eleitoral e econômico que também se configura.

A colocação do Marcos Amin é uma indicação de alguém que opera com fronts armados e assassinatos nas áreas de comunidades, que elege o tráfico de drogas como o grande inimigo a ser abatido, mas que também estabelece a morte de civis milicianos como lógica de atuação dessa polícia. Ele é um influencer que fatura politicamente e fatura para aqueles que estão ligados a ele. Quem é que indicou ele para Claudio Castro [governador do Rio de Janeiro]? É Márcio Canella, que é deputado estadual e que atua com muita força em Belford Roxo, uma força associada à estrutura miliciana daquela cidade. Ele também faz parte dessa estrutura toda.

Tudo isso está em jogo, por isso o cenário ficou tão complexo. São muitos interesses em jogo, e interesses que estão disputando entre si essa base econômica e eleitoral, que se torna pequena para tantos grupos organizados.

IHU – A milícia sempre teve um modo de atuação muito particular que a diferenciava do narcotráfico. Agora, há uma relação das milícias com o Comando Vermelho. Como compreender essa aproximação?

R: Eu refuto a ideia de que há uma unificação entre milícias e tráfico de drogas, que é uma lógica que tem sido construída por esse atual governo do Rio de Janeiro e pela estrutura de segurança pública. A ideia de narcomilícias é uma ideia política, é uma construção política para jogar a responsabilidade das milícias nas costas do pessoal do tráfico de drogas. Isso é uma farsa.

A milícia sempre atuou por dentro da estrutura do Estado, por dentro da estrutura de segurança pública. Ela surge, emerge com essa configuração. Ela faz parceria com a estrutura do tráfico e os dois vão operar conjuntamente na estrutura miliciana. É claro que a parte visível no chão da rua, aqueles que são sujeitos a serem mortos em operações policiais, é a estrutura civil, a estrutura que muitas vezes vai vir de origem do tráfico. E é sobre esses que vão ser jogadas descargas punitivas, como as mortes, mas também é sobre esses que são jogadas as responsabilizações, as culpas, as acusações, e de uma forma articulada, política, para se dizer que são narcomilícias.

Com isso, você livra toda a raiz miliciana que está dentro da estrutura do Estado e diz que os culpados são os outros. E, por óbvio, tem que matar esses culpados. Na verdade, narcomilícia é uma jogada político-mediática e eleitoral para se poder beneficiar com essa nomenclatura e dizer que eles são os responsáveis. Só que é mais complexo. Os civis atuam em parceria com a estrutura militarizada dentro do Estado, na área de segurança pública. Só que esses civis são os mais frágeis nessa estrutura toda.

Então, estamos vendo a reação dessa parte mais frágil, nessa articulação como um todo. Por isso, defendo que eles percebem que eles estão “pagando o pato” e eles não querem fazer isso.

Comando Vermelho

Como o Comando Vermelho não tem aproximações diretas com a estrutura de segurança pública da mesma forma que a milícia, ele tem relações com a estrutura de segurança pública no pagamento do “arrego” [suborno para policiais não travarem o tráfico de drogas], nos acordos que vão fazer funcionar o tráfico de drogas.

O Comando Vermelho foi acessado por dois caminhos: foi acessado pelo próprio Zinho, para a manutenção do seu poder na disputa com os grupos milicianos que começaram a ser dissidentes dentro dessa estrutura miliciana que ele controlava. E ele passa a se valer do apoio bélico-armado do Comando Vermelho em acordos que fez. Esse foi um lado da ida para os negócios com o Comando Vermelho.

O outro lado é que a própria estrutura policial envolvida nas milícias prefere hoje fazer acordo tranquilo, claro e certo com o Comando Vermelho, do que ficar fazendo acordos com as milícias, essas milícias que têm essa presença mais civil, mas que também têm policiais envolvidos. Por quê? Porque esses policiais envolvidos permanentemente reconfiguram os acordos e visam cada vez mais ganhos. Por isso, eles preferem fazer um acordo fechado, sem modificações, com o Comando Vermelho e com ganhos garantidos do que acordos não tão consolidados, não tão firmes, mas que se fragmentam e que vão gerar cada vez mais interesses e subdivisões. Assim, a própria estrutura de segurança pública começa a modificar o seu comportamento com relação à hegemonia miliciana nesses territórios.

IHU – Como essa associação entre milícia, Comando Vermelho e outras organizações criminosas deve se desdobrar e quais os impactos no cotidiano da cidade?

R: Com a ampliação do fosso social, com a ausência de políticas sociais e públicas que protejam as pessoas e garantem sua subsistência mínima, sua vida e sua integridade e com a ausência de perspectivas de futuro, cada vez mais o mundo do crime, dos grupos armados, estatais e não estatais, que representam ganhos, vantagens e soluções para a vida das pessoas, vai aumentar. Cada vez mais esses grupos vão penetrar na sociedade e ampliar seus interesses. Um grupo maior de grupos de interesses e controles territoriais, de movimentações, disputas, de verdadeiras guerras, vai se estabelecer. São guerras articuladas com estruturas políticas, com jogos de interesse, com votações, com proteção por parte do Judiciário. Então há uma complexidade cada vez maior no cenário futuro.

Como tudo isso, há uma grande nebulosa em expansão, não temos noção de todo esse universo em expansão. Estamos arranhando a casquinha da ponta do iceberg. Na verdade, trata-se de algo mais profundo e amplo, para o qual consigo olhar de forma ampla e genérica, mas não consigo ver todos os detalhes desse grande mosaico e gigantesco tabuleiro de xadrez. Cada peça movimentada, cada jogada feita, tem inúmeras implicações para o futuro e elas partem de uma base que está em modificação e transformação. Repito: é um cenário cada vez mais complexo.

Posição federal

Os Ministérios da Justiça e da Defesa do governo Lula não parecem dispostos a colocar a mão no sangue que essa estrutura representa no Rio de Janeiro. Eles querem uma posição mais distanciada, que não os comprometa e não traga para eles o ônus de uma política tão violenta, bruta e ineficiente. Permanece um cenário de correr atrás do próprio rabo sem solução. Na verdade, eles estão assistindo a isso, fazem discursos, dizem que vão pedir ajuda à Marinha, fazem discursos sobre operações em rodovias, portos e aeroportos, mas, na verdade, é mais do mesmo. Eles investem na mesma lógica de sempre, de política beligerante, de confronto, na lógica da guerra.

Ao perceberem a situação, tentam se preservar, não se envolvendo diretamente e não trazem nenhuma alternativa, nenhuma proposta diferenciada. Eles mantêm o discurso; o discurso de sempre, tentando se proteger ou não se envolver totalmente, ou se descolar da realidade da política de segurança pública do Rio de Janeiro e da estrutura do Estado do Rio de Janeiro como um todo. Este é o cenário do governo federal: ele encena, tenta ganhar tempo e pensar uma alternativa ou torce para que a agenda midiática se modifique, mas ela não está se modificando. Essa agenda decorre da morte dos três médicos e mergulha nesse evento de magnitude tão expressiva como foi o de ontem (23-10-2023).

Sugerimos a leitura da íntegra da entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos , que além dos trechos reproduzidos, é discutido o papel do atual governador bolsonarista do Rio de Janeiro, o projeto de manutenção da lógica bélica de mortes, sangue e confronto, a compreensão que os milicianos passaram a ter de seu papel no jogo como um todo e o que pode ocorrer nas eleições municipais de 2024. No final, José Cláudio não deixa de sugerir alguns caminhos para interromper a expansão do crime.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  Apresentação: Eduardo Scaletsky
Leia também o artigo do autor “Como se toma o poder: Bolsonaristas na esteira dos milicianos“.