Você pagou com traição
A quem sempre lhe deu a mão.
(Jorge Aragão, Dida e Neoci Dias)

Quando Jair Bolsonaro estava por ser excluído do Exército em razão de ter conspirado com outro capitão para perpetrar atentados terroristas, e depois de ter praticado no inquérito militar a que respondia aquilo que viria ser uma de suas características, a mentira, o Centro de Comunicação Social daquela força publicou, em um boletim distribuído aos membros da organização, as seguintes palavras a respeito dos dois inculpados: “Tornaram-se, assim, estranhos ao meio em que vivem e sujeitos tanto à rejeição de seus pares como a serem considerados indignos para a carreira das armas. Na guerra, já plena de adversidades, não se pode admitir a desonra e a deslealdade que não do lado inimigo, jamais do lado amigo.”

É da própria natureza da guerra, e uma virtude desejada do bom comandante, a capacidade de enganar, atraiçoar, iludir, dissimular, dissuadir, blefar e ameaçar o inimigo. Napoleão, César e Alexandre foram mestres nessas habilidades, que são pedagogicamente incutidas na formação de todo o guerreiro. Por outro lado, o companheirismo e a lealdade, ao lado da disciplina, são fundamentos de toda organização militar em que a confiança nos camaradas de armas é a garantia da própria vida. Essa dialética lealdade e traição é inerente à maneira de ser de quem tenha formação nos assuntos da guerra.

Ter isso em mente permite entender o que se passou entre os comandantes do Exército Brasileiro durante os governos de Lula e Dilma e que os levou à traição, ao se aliarem a uma conspiração para sabotar e, ao final, depor a presidenta. A interpretação mais apressada e, portanto, superficial, disseminada inclusive por militares que conspiraram, aponta uma “inconformidade” com a Comissão da Verdade como razão do mal-estar com o governo de então. Faz parte da tática jogar pechas desairosas sobre o inimigo, no caso a mácula do “revanchismo”. Mas isso foi uma justificativa, não a razão da sedição militar.

Para saber por que esse grupo de generais liderado por Villas Bôas agiu dessa maneira, é preciso conhecer um pouco mais da sua visão estratégica em relação à missão que têm: defender a Nação de ameaças. Infelizmente, referir-se à Estratégia Nacional de Defesa aprovada pelo Congresso Nacional em 2013 e que deveria ser sua diretriz de operação de nada serve, porque suas motivações foram bem outras.

É preciso, então, olhar em outra direção para sabermos quais são as ideias desses generais, ideias essas que presidem sua ação supostamente em defesa da pátria brasileira. Os conspiradores contra os governos do PT vêm todos de uma geração que teve sua formação básica em instituições de ensino militar na década de 1970 até começo dos anos 1980. Nessa época, o que se aprendia na AMAN e nas demais instituições de ensino militar tinha a dupla marca da Guerra Fria e da ditadura. Na percepção de então, a defesa do Brasil deveria se organizar no enfrentamento de duas ameaças, a cobiça pela Amazônia e, principalmente, o comunismo. A formação dada aos militares do Exército, embora não deixasse de instruí-los na doutrina da guerra convencional, estava voltada para o combate na selva e para a guerra revolucionária.

O aprendizado dessa doutrina está presente no reacionarismo preponderante entre esses oficiais. Defender a Amazônia significa, para eles, ocupá-la fisicamente através, não apenas pela presença de bases das forças armadas mas, principalmente, no estabelecimento em seu território de atividades econômicas que fixem populações não indígenas na região. Em sua visão canhestra, os brasileiros originários são considerados “não integrados” ao que imaginam ser a Nação e, portanto, cooptáveis por interesses estrangeiros. Daí sua tolerância com o desmatamento, o garimpo e outras atividades destruidoras do meio ambiente, para não falar de iniciativas megalomaníacas como foi a Transamazônica. E é por essa visão tosca que se opõem até hoje à demarcação de terras indígenas como prevê a Constituição.

O outro inimigo, o comunismo, é razão de uma dubiedade da própria auto imagem dos militares, que não sabem bem se devem se ater à defesa externa ou se são polícia. Uma vez que imaginam que o inimigo estaria infiltrado entre os brasileiros, sentem-se chamados a agir na segurança interna. A redemocratização que legalizou a atividade política dos partidos de esquerda e o desaparecimento do comunismo da cena internacional não levaram a uma reconsideração dessa esquizofrenia segurança-defesa.

Ao contrário, o reacionarismo tão firmemente inculcado na formação desses comandantes os levou a abraçarem a ideologia delirante da extrema direita norte-americana e suas fantasias sobre o “marxismo cultural” e também à necessidade de travarem contra este uma guerra cultural. Vem daí sua prioridade dada ao desenvolvimento de capacidades de guerra híbrida para as forças armadas e o alinhamento com as opções estratégicas dos EUA, país onde um grande contingente de oficiais brasileiros fez e, segue fazendo, estágios e atividades de especialização e formação complementar.

Aliás, a influência norte-americana só fez aumentar a esquizofrenia defesa-segurança interna. Para os EUA, o papel das forças armadas latino-americanas é exclusivamente o de polícia, já que a defesa do que eles chamam “hemisfério ocidental” é sua atribuição exclusiva. Por essa razão, sua pressão para que nossos militares se transformem em forças de segurança melhor armadas e equipadas do que as polícias convencionais, como já conseguiram fazer na Colômbia e no México. E, também por essa mesma razão, a criação do Conselho de Defesa da UNASUL e sua missão de criar doutrina e estratégia próprias e independente dos EUA era absolutamente inaceitável. Uma das primeiras ações de Bolsonaro foi acabar com a UNASUL.

A ideologia de extrema direita abraçada pela maioria dos comandantes e sua fantasia de combater o marxismo cultural orientou sua participação na conspiração para derrubar o PT do governo. Jair Bolsonaro apareceu para eles com uma espécie de cavalo de Tróia capaz de conduzi-los ao poder pela via eleitoral. Seus crimes pregressos foram perdoados e essa figura sinistra, misto de bufão e monstro, passou a ter franqueada para si as portas dos quartéis. Da mesma forma, a quadrilha de Curitiba e sua escandalosa campanha para destruir a política, principalmente as lideranças da esquerda, foi apoiada com entusiasmo por representar mais um movimento dessa guerra assimétrica.

Alguém poderia perguntar se não causava constrangimento a esses generais o fato de estarem traindo sua comandante-em-chefe, a presidenta Dilma. A resposta é não, porque para esses senhores Dilma era, na verdade, o inimigo para quem vale “a desonra e a deslealdade”. Villas Bôas não teve nenhum pudor em revelar sua traição, pois, na sua convicção, estava legitimamente buscando a derrota do inimigo, a esquerda e o PT.

Este é o ponto central da questão militar hoje. Esses profissionais vêm sendo treinados para considerar uma grande parcela da população brasileira, as pessoas que compartilham as ideias da esquerda, como inimigos da Nação. A narrativa que justifica essa visão esdrúxula (quem é de esquerda não é brasileiro) nasceu da falsificação da história nacional em dois momentos importantes. Primeiro, o levante militar de 1935, uma rebelião fracassada dirigida por militares oriundos do tenentismo e apoiados pelos comunistas contra o governo autoritário de Vargas. Seus propósitos eram nacionalistas e democráticos, como declarado por um de seus líderes, o capitão Agildo Barata Ribeiro. Em lugar do episódio histórico, é difundida até hoje no meio castrense a versão de uma traição fratricida instigada por estrangeiros.

O segundo mito responsável pela ideologia desses militares foi a proposta das Reformas de Base de João Goulart. Seu projeto de solicitar ao Congresso mudanças nas leis que regulavam a propriedade da terra, o uso do solo urbano, o ensino e as universidades, as normas tributárias e outras iniciativas voltadas à maior democratização da vida nacional e à redistribuição de renda e riqueza, foi taxado de comunista e antinacional, justificando o golpe de 1964 e a ditadura por este inaugurada, longeva de 21 anos. A mesma ditadura acabou por extinguir toda a possibilidade de debate no interior das forças armadas ao excluir de suas fileiras mais de 6 mil militares legalistas que se opuseram ao golpe, muitos deles com ideias de esquerda. Restou unicamente a visão unidimensional da direita, no máximo com a nuance de sua linha-dura. É interessante notar que a Constituição de 1988 incorporou em seus princípios e nos objetivos da Nação brasileira o conteúdo quase completo das reformas de Jango.

Além desses episódios históricos, uma das mais aberrantes lendas da extrema-direita brasileira foi a que taxou os governos do PT como comunistas. Numa versão extremada de sua ideologia delirante, o projeto político da esquerda no poder seria a antessala de um plano que iria muito além das tímidas reformas efetivadas ou propostas com intuito de melhorar as condições de vida dos mais pobres, impulsionar o crescimento da economia brasileira e ocupar um espaço mais relevante no concerto internacional. Na impressão fantasiosa desses militares, incapazes de perceber a arraigada posição nacionalista da esquerda, haveria, isto sim, o propósito dissimulado de subordinar o Brasil à pequena Cuba ou à China e Rússia.

Armados por esse tipo de ideário de escassa racionalidade e nenhuma correspondência com o mundo real, nossos briosos comandantes montaram no cavalo encilhado do capitão insubordinado e mentiroso e assumiram o governo do país para… Para quê mesmo?

Essa é a tragédia do Brasil. Eles não têm a menor ideia do que é ou deveria ser um caminho para o desenvolvimento nacional. A estreiteza de sua formação intelectual, associada ao deslumbramento com os EUA, não é capaz de produzir nenhuma ideia minimamente coerente capaz de definir algum desígnio para o futuro do nosso país.

Por isso, não apenas concordam com as diretrizes de Guedes, cujo horizonte é o mercado financeiro: facilitar gordos negócios aos bancos e fundos de investimento. Não conseguem ver na destruição da Petrobras, da engenharia nacional ou do nosso programa nuclear perpetrados pela Lava-jato e pelo governo o aniquilamento de um projeto de desenvolvimento nacional. E também por essa miopia política se acomodam à condição de destruidores do pouco de ordem democrática que vinha sendo implantado no país. Acabaram se tornando meros serviçais dos interesses da oligarquia financeira daqui e de alhures, que lucra com privatizações, com concessões de recursos naturais e com o assalto ao orçamento público. O governo a que servem cada vez gasta menos com o bem-estar do povo e reserva mais dinheiro do orçamento para pagar juros aos rentistas. Quando o Brasil voltar à democracia, nossos militares precisarão ser severamente reeducados.

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Sobre a confissão do general Villas Bôas, leia o artigo “Silêncio, medo e omissão diante da confissão do general Villas Bôas” de Jeferson Miola.