A escravidão tem que ser vergonha para a gente como o Holocausto é para os alemães”. (Jessica Ellen)

No final de março de 2021 a páscoa judaica – Pessach – caiu no pior momento da pandemia de Covid-19 no Brasil, com o colapso dos serviços de saúde em meio a uma mortalidade crescente e alarmante, a maior do planeta.

A pandemia atinge e horroriza a todos, mas o perfil dos casos, das mortes e da fome tem uma predominância social e racial clara. O que se passa hoje no país aguça e escancara a naturalização da violência e do racismo imperante desde a colonização. A espoliação e extermínio dos povos originários, incluindo-se nesse processo o papel de epidemias; a escravidão de negros traficados da África e que se perpetua nas bases estruturalmente racistas da sociedade brasileira.

O sentido maior da festa de Pessach é o da passagem da escravidão para a liberdade, valor universal. A história de Pessach se liga a outros episódios e dimensões da liberdade e à luta contra o antissemitismo, à luta contra toda espécie de racismo.

Pessach celebra a saída da escravidão no Egito. Todo ano essa história é narrada para novas gerações. Essa transmissão não é uma mera repetição, ao contrário, produz uma intensa diferenciação. Ela tem um centro, mas são múltiplas as formas de contá-la. Em cada casa, em diferentes momentos históricos, ela foi apropriada de acordo com as condições e também sob diferentes cosmovisões. Unidade na multiplicidade, é como um rizoma complexo que se realiza a conexão em uma história milenar.

Ao lembrar a escravidão no Egito lembram-se também outros momentos de perseguição e opressão, assim como de resistência, luta e libertação. Fomos e somos escravos, em diferentes níveis e a luta pela liberdade se atualiza eternamente para todos os povos.

O ritual da celebração de Pessach tem uma simbologia cunhada na tradição religiosa, mas entre as narrativas possíveis incluem-se as que escolhem uma perspectiva laica. A questão da liberdade é o núcleo do pensamento de Spinoza. Criado no interior da comunidade judaica portuguesa na Holanda do século XVII, seu pensamento se tornou inconciliável com os dogmas da religião e ele foi excomungado da Sinagoga Portuguesa de Amsterdam. Foi banido e deixou de ser judeu na época, mas posteriormente foi considerado fundador do judaísmo secular moderno.

Spinoza foi anticlerical e crítico da religião. Na sua ontologia, Deus é substância única e tem uma infinidade de atributos e modos. É unidade e multiplicidade. A religião judaica reza: “Escuta, ó Israel, Deus é nosso, Deus é um”, exprimindo também sentidos de unidade e multiplicidade. Porém, há uma diferença radical: o Deus de Spinoza é pura imanência, se refere à existência, a tudo e todos na natureza. Não se trata aqui de aprofundar a filosofia de Spinoza, mas de chamar atenção para a ruptura do seu pensamento com a ortodoxia, sobretudo aqueles que literalmente entendem haver um ‘povo eleito’. Ao mesmo tempo, ressalta-se o forte vínculo do filósofo com sua ancestralidade, até em seu empenho em superar a superstição que ele identifica na religião.

Para Spinoza, Moisés foi legislador e não receptor direto da mensagem de um Deus transcendente. Revelações e profecias serviram como instrumento de governo e tiveram como objetivo a obediência, não o conhecimento. Sua obra seguiu rumo ao autêntico percurso da servidão para a liberdade, tema nuclear da ‘Ética’.

A influência do seu pensamento no judaísmo moderno é importantíssima, ela se estende à várias vertentes interpretativas no interior da própria religião. Enfim, o pensamento de Spinoza penetra a experiência e narrativas de correntes do judaísmo contemporâneo, inclusive nos sentidos atribuídos à celebração de Pessach.

Pessach foi lembrado mesmo durante situações extremas de sofrimento e violência como inquisição, pogroms e campos de concentração, como uma força de resistência que se inspira no sentido da liberdade. Isso ultrapassa a fronteira de um povo específico no combate contra a opressão, o racismo, o genocídio. Dessa forma, vale estabelecer relações entre Pessach e a tragédia brasileira acirrada no contexto dessa pandemia.

A característica local da Covid-19 estava de certa forma antecipada pelas condições de uma sociedade extremamente desigual. Desde o início, já eram presumidas dificuldades na efetivação das práticas de prevenção para a grande maioria da população. Essa realidade tornou-se intensamente agravada com a gestão desastrosa de um governo autoritário.

A ação governamental, ao invés de instituir bloqueios e ser ágil em prover auxilio econômico efetivo e persistente aos mais vulneráveis, estimulou o negacionismo. Em praticamente todos os aspectos – medidas de prevenção por distanciamento e imunização, tratamento, registro de dados, etc. – houve boicotes explícitos ao enorme esforço não apenas dos pesquisadores e profissionais de saúde, mas de outros setores profissionais e da sociedade civil. Mesmo com o imenso trabalho, resistência e manifestações indignadas de muitos, não foi possível mitigar o avanço da grande tragédia em curso.

A correspondência entre ações criminosas no combate à pandemia e diretrizes ideológicas de extrema direita são evidentes. Não se trata de fazer comparações, mas de perceber a gravidade do fato de símbolos e sinais do nazismo estarem sendo expressos aqui, de um genocídio estar ocorrendo aqui, nadando de braçada na naturalização da desigualdade e do racismo já imperantes na sociedade brasileira.

Como exemplo doloroso, na véspera do dia da consciência negra de 2020 – 20 de novembro – João Alberto Silveira Freitas foi assassinado de forma violenta e gratuita, marcando de indignação manifestações contra o racismo no dia de celebração da cultura afro-brasileira. Nesse dia, a atriz Jessica Ellen fez uma declaração tocante e necessária: “a escravidão tem que ser vergonha para a gente como o Holocausto é para os alemães”. Cabe a todos o exercício diário de combate ao racismo estrutural em nosso país.

Voltando à história de Pessach, a “peste” nos animais estava entre as pragas enviadas ao Egito para demover o Faraó da sua posição e aceitar libertar os judeus escravizados. A ideia da peste como castigo esteve presente na perspectiva supersticiosa de várias culturas na antiguidade. Não caberia procurar significados mediante uma leitura literal do faraó e das pragas, mas vale encontrar um sentido atual para ambos.

É possível sinalizar pequenos ‘faraós’ que se investem no poder, são destrutivos, semeiam ódio e impedem deliberadamente que recursos da ciência e da tecnologia hoje existentes sejam efetivos para impedir o avanço da disseminação de um vírus letal. Para além disso, vale a interrogação sobre circunstâncias globais mais abrangentes que estão na gênese dessa nova “peste”.

Pandemias foram recorrentes na história desde tempos remotos e quase sempre foi possível estabelecer vínculos entre esses fenômenos naturais e situações de guerra, fome ou de mudanças profundas nos modos de vida. No século XXI, mais do que nunca, é impossível separar natureza e artifício. A emergência de uma grave pandemia respiratória era uma potencialidade prevista, dadas condições objetivas da interferência humana no planeta.

Questões ecológicas como o aquecimento global estão sinalizadas como origem de novas possíveis catástrofes. O modo ocidental de apropriação da natureza está produzindo mudanças ambientais que impulsionam o surgimento de novas pandemias e outros desastres ameaçadores. Talvez aí possam ser produzidos sentidos para ‘pragas’ e para um Faraó que precisa ser demovido da sua imensa arrogância.

À perspectiva imediata da ciência e da tecnologia para conter a transmissão do vírus, é necessário integrar uma visão mais ampla, como a que vem sendo expressa pelo pensador e liderança indígena Ailton Krenak, cuja voz cresceu em alcance durante esse período pandêmico.

Ele chama atenção para como o modo de vida e a relação com a terra de algumas comunidades tradicionais, quilombolas e povos indígenas, não apenas preservam, mas constituem a floresta como sistema vivo, conformando a sua real defesa e, por consequência, do ambiente terrestre.

Os povos indígenas não devem ser apenas protegidos, mas valorizados em sua diferença, cujo modo de ser é vital para todo o planeta. Em toda sua vulnerabilidade, resistem e preservam um tesouro que pode vir a ser exercido e compartilhado por todos: a potência da qual o homem ocidental se separou ao se conceber à parte e poderoso em relação à natureza.

Grandes mudanças ocorrem impulsionadas por momentos de crise. Em meio à tragédia surgem oportunidades, é preciso fazê-las florescer. A comemoração de Pessach relembra períodos duros que se transmutaram em conquistas libertárias. Ao se relacionar a saga de diferentes povos oprimidos pelo racismo, encontra-se como elo a importância da ancestralidade, a lembrança da memória dos antepassados. Ao se reverenciar histórias, ritos, festas, divindades, afirma-se a singularidade dos povos. Esta se expressa, não em uma identidade particular, mas na simultaneidade entre unidade e multiplicidade que realiza o movimento da existência não apenas dos povos, mas de todos os seres.