Você já deve ter ouvido que o PT e, em especial, o Lula seriam os responsáveis pelo bolsonarismo. Embora isso faça sentido e seja repetido pelas melhores bocas, de imediato sentimos um certo estranhamento. Seria Lula um cara tão onipresente, quase uma espécie de divindade, ao ponto de ser responsável por ele mesmo e por seu oposto? Bom, entender perfeitamente essa afirmação é uma tarefa difícil, mas não precisamos estar a sós nessa tentativa. Como diria Newton, podemos, para isso, nos “apoiar nos ombros de gigantes”, em especial daqueles que nos ofereceram modelos de entendimento da história.

Dois desses gigantes são Georg Hegel (1770-1831) e Jean Baudrillard (1929-2007). O primeiro nos brindou com a “dialética histórica” e se constituiu numa grande influência filosófica do Século XIX, cuja luz esteve sempre presente nos textos de Marx e nos ajuda a descortinar todo tipo de fenômeno social. O segundo, uma estrela do pensamento no século XX, nos apresentou a noção de “hiper-realidade”, que nos permite enxergar melhor os mecanismos de manipulação por trás da propaganda, das imagens e da sociedade de consumo.

Em tempos pós-modernos, onde verdades e narrativas absolutas foram colocadas em xeque, modelos teóricos passaram a se destacar como ferramentas no entendimento do mundo. Eles são lentes, à luz das quais podemos analisar diferentes facetas dos fatos ao nosso redor. Em última instância, esses modelos buscam levantar padrões gerais e desvendar seus processos. Em particular, os modelos propostos por Hegel e Baudrillard já estão fortemente presentes em nosso cotidiano, mesmo sem serem plenamente percebidos. A tendência que temos a enxergar as coisas do mundo como um permanente conflito de opostos, mas opostos que se justificam e conferem contornos mútuos, como o silêncio e o ruído, não são novidade. Da mesma forma, já é quase um clichê definir a vida das pessoas como uma vida de ilusões.

Mas nem sempre um modelo isolado é capaz de destrinchar uma realidade complexa. Às vezes só atrapalha, por exemplo, quando se culpa o coitado do Lula pelo surgimento da bizarra figura que se instalou hoje em Brasília. Qualquer um que conheça a estrutura dos “fenômenos” Lula e Bolsonaro percebe que embora eles fomentem um ao outro, ao mesmo tempo, eles estão também bastante longe de constituir, exatamente, opostos. Na realidade, os polos hoje em conflito são tão assimétricos que seria impossível aplicar a eles as noções do movimento dialético proposto por Hegel. Seria como se a ameaça de um garoto com um estilingue gerasse um conflito nuclear em resposta. Sendo mais preciso, como a monstruosidade da nova extrema-direita brasileira poderia ter sido criada a partir de uma esquerda “meia-boca” ou, melhor dizendo, de um governo de centro-esquerda como foi o do PT? Para que o pêndulo da história funcionasse, uma força dialética acessória seria necessária.

Mas antes de explicar quem deu esse empurrãozinho na dialética histórica, nós precisamos deixar claro o que é hiper-realidade. Toda percepção do mundo compõe uma narrativa, seja ela compartilhada ou individual, onde os fatos se relacionam entre si ao ponto de se modificarem conforme a demanda do interlocutor. Essas narrativas jamais constituirão o mundo em si, mas “cópias aproximadas” dele, ocupando, no mundo metafísico, diferentes distâncias da realidade, conforme os referenciais que utilizarem como lastro. Ou seja, a maneira como vemos o mundo pode se aproximar menos ou mais da realidade, conforme o interlocutor. A filosofia, o conhecimento tradicional/empírico e a ciência são exemplos de âncoras que garantem que jamais percamos o contato com a realidade. O negacionismo e a ignorância são, por sua vez, processos que tendem a fazer as narrativas se afastarem do mundo real.

As diferentes distâncias da realidade são comuns às narrativas, mas quando essas perdem totalmente o contato com a realidade e chegam mesmo a preterir o real, surge o que Jean Baudrillard denominou de mundo hiper-real. Como um refrigerante de laranja que é tomado mesmo quando o suco de laranja também se encontra à mesa.

O filme Matrix nos apresenta um fabuloso exemplo disso, em especial, quando é oferecida ao personagem de nome Cypher (Joe Pantoliano) pelo Agente Smith (Hugo Weaving) a possibilidade de voltar, sem qualquer memória, ao mundo de ilusões que ele sabia ser a Matrix. Ou seja, na presença do real, o personagem opta pelo hiper-real. Claro, nem sempre essa escolha é tão explícita, mas ela é diagnosticada quando a cópia que escolhemos como a nossa versão do mundo não é mais uma cópia original, mas sim, propositalmente, a cópia da cópia. Embora ela seja a cópia, ou seja, carregue atributos do original, ela é uma cópia oca, sem conteúdo. Aristóteles diria que esse tipo de cópia carrega os atributos acidentais (no caso do refrigerante de laranja, a cor e o nome), mas não os essenciais (a laranja). As diretoras da série Matrix (as irmãs Wachowski) parecem querer ser explícitas ao mostrarem, em uma das primeiras cenas do episódio 1 da trilogia, um exemplar oco do principal livro de Baudrillard (Simulacros e Simulação) onde o protagonista, um hacker de nome Neo (Keanu Reeves), guardava seus programas. Um livro cujo conteúdo era, sabidamente, outro que não o original.

Mas o que isso teria a ver com a dita dialética histórica por trás da dualidade lulismo X bolsonarismo? Bom, parece já estar suficientemente claro, ou não? A resposta está no fato de que somente uma dialética a partir de uma narrativa hiper-real do Lula ou do PT seria capaz de gerar uma extrema-direita tão extravagante quanto a brasileira. Bolsonaro não foi criado por Lula ou pelo PT, mas sim em resposta a um Lula e um PT hiper-reais (seu simulacro, como diria Baudrillard), que nada têm a ver com a realidade. Bolsonaro e o bolsonarismo são fruto da oposição a uma ilusão quixotesca propositalmente acreditada pela tosca direita reacionária brasileira e por tantos outros que, acidentalmente, foram capturados pela sua narrativa hiper-real.

Lula e demais petistas jamais foram comunistas (mesmo que alguns assim se acreditem) e o tão temido conluio internacional que se deu no “Foro de São Paulo”, igualmente, não passava de uma modesta tentativa de rediscutir os caminhos da esquerda. Mas essa carapaça de ilusões que pouquíssimo ou nada tinham de real foi o substrato para a construção de uma cópia da cópia, como diria Jean Baudrillard. Essa, sim, constituiria a base da narrativa que viria a se tornar poderosa, fantasiosa e amedrontadora o suficiente para mover a dialética histórica que deu origem ao bolsonarismo e passou a se constituir como imune à realidade.

O PT e o Lula reais deixaram de importar diante do hiper-real, o que pode ser constatado observando a resistência de bolsonaristas em entender que nunca houve “mamadeira de piroca”, “cartilha gay” ou as próprias condenações do ex-presidente. O Lula criminoso e comunista está para a realidade como a Fanta Laranja está para o suco de laranja. Ele prevalece e fecha o ciclo do hiper-real por se impor sobre a realidade.

Modelos nos ajudam a entender os vetores de força que dão fluxo à história, apontam suas tendências e detalham seus processos, mas eles não revelam, necessariamente, os seus peões. Para combater apropriadamente os resultados da incorporação do hiper-real por parte da população brasileira é preciso saber quem são seus promotores. Talvez o já conhecido movimento global de extrema-direita que promove o tradicionalismo (mais corretamente chamado de medievalismo) e o negacionismo científico usando e manipulando, como títeres, políticos mundo afora. Talvez fatores mais pontuais, como um devaneio coletivo local respaldado por um juiz igualmente hiper-real e por uma mídia totalmente despreparada para lidar com as grandes questões da atualidade. Talvez, uma combinação oportunista de ambos.

Independentemente disso, a responsabilidade pelo surgimento do idiota-mor e de seus seguidores, definitivamente, não é do Lula! Desse crime, sem dúvida a pior das acusações que já recaiu sobre as suas costas, ele é inocente.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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