Meu presente de Natal vai para quem mais merece este ano: os incansáveis divulgadores da ciência. O texto abaixo é para vocês. “Tudo que nóis tem é nóis”!

De Exu para a bolha, com amor.

Um lamento que ouço repetidas vezes entre leitores de meus textos e divulgadores de ciência é o seguinte: “este texto é muito bom, mas não sai da nossa bolha”; ou “esse documentário é fantástico, pena que só atinja os que já pensam assim”; ou, como me disse ontem a querida Celia Bartone (em relação a outro texto) “É um soco no estômago. Infelizmente, aqueles que precisam levar esse soco não leem…” Todas essas frases chegam sempre acompanhadas de uma sensação de que eles não adiantam nada.

De fato, o exílio forçado da ciência e das humanidades em relação ao polo que se autointitula de direita causa problemas em todos os níveis. Isso, associado aos malditos algoritmos das redes sociais, torna compreensível o desânimo de divulgadores de ciência e a crescente impressão de que nossos esforços na área seriam inúteis ou muito pouco eficientes.

Mas essas frases vindas assim, de maneira tão fatalista, sempre me pareceram carregar um pouco de ilusão sobre a nossa real capacidade de controlar e entender o mundo à nossa volta.

Isso, em parte, porque não podemos esquecer que a falta de acesso ou a recusa à informação científica não é de hoje. Ela foi plantada e semeada, governo após governo, pela simples manutenção de estratos da sociedade em condições de penúria. Se a parcela da sociedade que tem tempo para o ócio e a contemplação não é informada do ponto de vista científico e humano (veja os jovens do Leblon!), como demandar isso daqueles que sequer sonham em ter tal tempo?

Cabe também ressaltar a complexidade inerente à distinção entre informação científica de qualidade e aquela que se configura como pseudocientífica ou, simplesmente, fake news. Mesmo no meio acadêmico muito escapa quando o assunto é ciência e epistemologia. Basta, para isso, verificar a quantidade de médicos que, até hoje, prescrevem ivermectina e hidroxicloroquina contra a Covid-19.

Estando, então, claro que a questão da falta de saber científico precede a divisão bipolar da sociedade, o que parece estar por trás do referido desânimo de divulgadores científicos seria, na verdade, a impressão de que, hoje, quem sabia pouco sobre ciência, passou a saber ainda menos por ter sido ativamente desinformado pelas narrativas alienadas de grupos de negacionistas.

Mais que isso, temos visto que a maioria dessas cruzadas virtuais contra o consenso científico não consiste de informações falsas isoladas, mas sim da venda organizada de contextos com estrutura paradigmática. Isto é, narrativas repletas de falácias e fakes interdependentes que se alimentam mutuamente. Por exemplo, se um grupo negacionista quer desacreditar uma vacina, ele não somente fala da vacina. Ele a chama de vacina comunista (ideologia); associa-a com um grupo opositor (política); inventa que ela é feita com células de fetos abortados (religião); denigre a imagem de cientistas envolvidos chamando-os de políticos (estratagema retórico); diz que quem for vacinado vai ter alteração no DNA e vai mudar de sexo (medo) etc. Assim, transforma-se a questão sanitária simples em uma cruzada bem mais ampla que reforçará os laços de união entre os integrantes da bolha destra. De certa forma, essa cruzada, dada a sua natureza, atenta também contra a pluralidade cultural, religiosa e a liberdade em si, e daí, o fato de muitos associarem a bolha ao fascismo.

Acontece que há um interessante momento de incoerência nessa linha de pensamento. A ciência que tanto defendemos não embasa, totalmente, esse nosso amontoado de impressões. Estudos conduzidos por pesquisadores de Oxford e Duke tendo por base eleitores norte-americanos, por exemplo, demonstraram que as bolhas não blindam indivíduos contra opiniões divergentes (das outras bolhas). Muito pelo contrário, com exceção de um percentual pequeno dos internautas que, de fato, não saem jamais de sua zona de conforto, a maioria daqueles que pertencem às bolhas de esquerda e de direita continuam se interessando e tendo acesso a informações que se opõem às suas crenças.

Ficou também demonstrado que aqueles voluntários das bolhas democrata e republicana que aceitaram receber sistematicamente (por meio de robôs) informações vindas da outra bolha reforçaram suas convicções ao contrário do esperado, que era a de uma flexibilização. Segundo os autores, isso seria explicado por sermos tão apegados às nossas identidades que, diante de informações contrárias, usaríamos toda a nossa capacidade cognitiva no sentido de encontrar cada vez mais caminhos para reforçar nossas crenças iniciais. Mas as causas psicológicas disto não nos interessam tanto agora.

Interessa-nos o que essa informação implica. A partir disso, seríamos obrigados a admitir que não é totalmente correto dizer que não temos sucesso em alcançar nosso público-alvo. Seria mais apropriado, como esperado e, até certo ponto, desejado, conceber que parcela da população opta por não concordar com a nossa mensagem. De certa forma, isso explica por que seus pais, primos ou irmãos não acreditam em você quando tenta convencê-los, com dados “concretos”. Eu personalizo este exemplo. Embora trabalhe com meio ambiente há 30 anos, tenho parentes que preferem confiar na opinião do atual ministro do meio ambiente quando o assunto é conservação.

Mas o que fazer então? Estaríamos fadados ao fracasso na missão de tornar o mundo um local mais livre, inclusivo e consciente? Deveríamos jogar a toalha e reconhecer a derrota?

A janela por onde entram os raios de sol encontra-se, justamente, no olhar para dentro. Nossa querida e aberta bolha está lá, esperando por nós e longe, muito longe, de poder ser chamada de informada, engajada e unida. Aquelas mesmas pesquisas que desanimam nos mostram que as potencialidades da comunicação dentro dela são imensas. Exemplifica isso o fato de que, dentre os eleitores do partido democrata, nas malfadadas eleições americanas de 2016, a aprovação do movimento Black Lives Matter e o consequente reconhecimento de que os EUA são um país racista atingiu notáveis 80% dos apoiadores de Hillary Clinton. Muito interessante observar que essa discussão, que foi catapultada pela polarização, atingiu positivamente também 31% dos integrantes da bolha do partido republicano.

Da mesma forma, no Brasil, a difusão da crítica ao machismo durante o movimento “Ele Não” foi incontestável, assim como têm sido as discussões sobre as vacinas, o meio ambiente, o racismo, a homofobia etc. O crescimento da consciência sobre essa pletora de assuntos dentro da bolha de esquerda não pode ser ignorado e o melhor sintoma disso é a verificação de que, ao menos no nível de discurso, tal consciência transbordou e impregnou segmentos da direita. Jamais essas discussões haviam atingido tão agudamente tanta gente.

No filme/documentário/catarse “AmarElo” do explosivo Emicida, falam-se coisas como “se tenho um amigo eu tenho tudo”, “é fácil quebrar um cigarro, mas não um maço inteiro” e “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. O tema central do filme, que parece, a princípio, ser a evolução da cultura e da luta negra no Brasil, se revela no final (isso não chega a ser um spoiler) como sendo o amor em si, na sua forma mais bruta e simples.

Da mesma forma, a saída para nosso dilema da bolha é olhar para dentro mais do que para fora. Olhar para a nossa própria cruzada e acreditar na sua força. Assim como acabou se mostrando evidente no “AmarElo” (que peço que todos vejam, para que este texto seja completamente compreendido), aqui não falamos mais só de divulgação científica. Agora falamos de ciência, meio ambiente, igualdade de raça e gênero, preservação da nossa liberdade cultural e de nossa democracia em si.

Não temos e nem precisamos ter ascendência sobre os que são inatingíveis e não há por que desanimar com isso. Como diria Marco Aurélio, seria como esperar morangos de mangueiras. Há motivos de sobra para vibrar e se motivar com as dezenas de milhões de pessoas ávidas por informações de qualidade que já temos em nossa bolha. Estas estão abertas à reflexão, à filosofia, à cultura, ao amor. Estas estarão lá, também, de olhos bem abertos, para enxergar, no seu tempo, que não é mais possível fragmentar as causas acima. Porque elas são, na verdade, uma só.

Vou terminar este texto roubando mais uma frase do documentário. “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Vai ver logo o filme. O que temos aqui é para ontem. (Texto originalmente publicado no face do autor, em 24/12/2020)

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O filme: (“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”)