A maior ameaça à segurança nacional do Brasil hoje são os Estados Unidos da América. Esta afirmação pode parecer surpreendente porque não foi sempre assim. O Brasil pôde contar com a amizade e a ajuda norte-americana por muito tempo, em especial no momento decisivo do desenvolvimento, que foi a consolidação do processo de industrialização, entre as décadas de 1940 e 1970. Depois desse período, infelizmente, tudo veio a mudar. Na esteira do processo de crise e retomada de sua hegemonia mundial desde 1971, diversas iniciativas para manter o controle do ocidente e derrotar definitivamente a URSS foram tomadas, ampliando o poder militar e financeiro dos EUA.
Um dos elementos dessa nova forma de exercer hegemonia pelos norte-americanos foi sua transformação em um obstáculo ao desenvolvimento brasileiro e de muitas nações antes recebedoras de um tratamento especial. Num giro de 180 graus, passaram a criar dificuldades à continuidade do progresso econômico e social de nosso país. Recordando algumas delas, deve ser mencionado, primeiro, o veto à aquisição de tecnologias avançadas e sensíveis como a nuclear e a informática, ainda nos anos 1970. Depois, a asfixia financeira causada pela mudança unilateral dos termos da dívida externa nos anos 1980. Mais adiante, a imposição do Consenso de Washington, causa da desindustrialização e do desmonte de boa parte da estrutura produtiva do país nos anos 1990, até chegar à destruição da engenharia nacional e da cadeia do petróleo, agora recentemente. Por fim, sua contribuição à deposição de Dilma Rousseff e à instauração do governo subserviente de Bolsonaro.
Estes fatos levam à seguinte indagação: por que essa atitude agressiva contra um aliado que sempre lhes foi fiel? Para começar a responder a essa questão, é preciso compreender a dinâmica do poder no sistema mundial. Na disciplina de Relações Internacionais é recorrente a interpretação de que todo o Estado poderoso se veja preso à armadilha de Tucídides: a necessidade inescapável de fazer guerra contra um possível adversário em ascensão. Para o pensador grego, que foi um dos fundadores da ciência da História, esse foi o motivo da Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, pela hegemonia da Grécia, iniciada em 431 A.C. Desde então, é comum a referência à sua análise para explicar o choque e muitas vezes a guerra entre Estados que disputam uma posição central na ordem internacional. Na última versão de sua estratégia nacional de segurança os norte-americanos seguem essa lógica e deixam explícita a necessidade de impedir a ascensão da China e de continuar seu cerco à Rússia.
José Luiz Fiori em “A Síndrome de Babel” nos traz uma hipótese interpretativa desse comportamento dos EUA, destruindo os pilares da ordem internacional de que haviam sido os principais construtores.(1) Uma vez que tanto China como Rússia têm alcançado ampliar sua influência e ascender dentro da legalidade da ordem internacional, os americanos passaram a ver nessas regras uma limitação de seu poder e espaço de manobra. O governo Trump foi o paroxismo desse comportamento fora da lei, mas desde a guerra do Iraque e do boicote à ação de diferentes agências da ONU, essa é uma tendência constante no comportamento norte-americano nos últimos 20 anos, ou mais. Diferentemente do que ocorrera na época da Guerra Fria, a contenção do inimigo hoje só parece ser possível através do desmonte de toda a ordem institucional e legal do sistema internacional que fora o alicerce do poder americano até recentemente porque a ascensão desses novos polos de poder vem se dando justamente por dentro das regras do jogo e da lei internacional.
Ora, se as normas da ordem mundial estão permitindo a ascensão chinesa e o reposicionamento de diferentes atores na cena global, inclusive o Brasil, Washington passou a ver na própria legalidade internacional um obstáculo à sua hegemonia que precisa ser afastado. Como esse rearranjo nas posições de poder relativo é tido como uma ameaça à sua segurança, tal como o Deus do povo de Babel, os EUA tratam de semear a discórdia e a confusão para impedir que seus adversários continuem a galgar degraus para cima. Trata-se então de uma nova forma de exercício do poder no sistema internacional, realizada através da destruição de sua própria lei e ordem e criação do caos.
Como estamos testemunhando, a guerra de destruição é contra tudo e todos, incluindo em primeiro lugar China e Rússia, mas também inimigos menores como Síria, Irã e Venezuela. A guerra se estende da Alemanha e toda a União Europeia ao Brasil e a iniciativas de integração regional ou a tratados de cooperação realizados fora de seu controle, alcançando inclusive instituições multilaterais como OMC, OMS e muitas outras agências, protocolos e tratados sob os auspícios das Nações Unidas.
No que nos concerne como brasileiros, precisamos admitir realisticamente que os EUA são não apenas a maior, mas quase que a única ameaça à nossa segurança e soberania. E também que se tornou contrário ao seu interesse o desenvolvimento do Brasil porque esse desenvolvimento vinha necessariamente fazendo crescer a importância do nosso país na comunidade internacional, ainda mais que se fazia acompanhar de uma indiscutível liderança na América Latina. Quando Obama qualificou Lula de “o cara” não estava apenas manifestando uma inveja pessoal pela popularidade de nosso então presidente, mas sinalizando o desconforto do status quo americano com o grau de protagonismo brasileiro.
E foi durante o seu mandato que uma guerra híbrida se desencadeou, primeiro com a espionagem à Presidência da República e à Petrobras, em seguida com o desencadear do processo de lawfare contra nossas indústrias mais competitivas internacionalmente, petróleo e construção pesada, na Lava-jato, além da aquisição hostil da Embraer pela Boeing e a campanha contrária ao avanço do Mercosul e, principalmente, da Unasul e da Celac. O interesse de Washington é evidente no golpe de 2016 e, depois, na vitória de Bolsonaro em 2018 e seu governo de destruição nacional e subserviência canina aos EUA.
A pergunta necessária é o que estiveram fazendo aqueles servidores públicos encarregados da defesa do país enquanto tudo isso acontecia? Onde estavam os militares? Para decifrar este enigma, é preciso partir da constatação de que as agressões de Washington nunca foram percebidas como tal por aqueles que têm por dever nossa defesa. O que levanta outra questão, ainda mais grave. Por que essa incapacidade de perceber uma ameaça tão evidente? A resposta começa pela constatação de que, infelizmente, as Forças Armadas estavam e continuam mais ainda completamente despreparadas para reconhecer os sinais dessa que é a maior ameaça à nossa soberania nacional.
Desde 2013 o Brasil definiu uma Estratégia Nacional de Defesa que aponta claramente as vulnerabilidades do país na cobiça às nossas riquezas naturais do solo, do mar e da biodiversidade e que também indica a necessidade de contradizer o status quo internacional na escolha de nosso caminho de desenvolvimento independente. Embora essas definições tenham sido amplamente discutidas até se tornarem lei aprovada pelo Congresso Nacional, seu conteúdo nunca foi assimilado pela maior parte dos militares brasileiros. Possivelmente sua aquiescência tenha sido apenas um jogo de cena camuflando convicções bem divergentes.
Se formos analisar as manifestações recentes de comandantes das três Forças, mas principalmente do Exército, quando referem ameaças ao Brasil, encontramos um discurso que não tem nada a ver com o espírito da lei estabelecido pelo Decreto Legislativo 373/2013, que definiu a Política Nacional de Defesa. São afirmações que fazem eco a teorias conspiratórias da extrema-direita norte-americana e que revelam uma ignorância e um despreparo intelectual chocantes.
Em sua quase totalidade, indicam fantasias como o “marxismo cultural” ou o “gramscismo” como os maiores inimigos da Nação. A questão, entretanto, não se limita a um baixo nível da formação científica das carreiras da defesa nas disciplinas de História, Geopolítica e Relações Internacionais, o que esse tipo de discurso absurdo revela. Além do contraste em relação à formação profissional específica de doutrina, tática e estratégia, essa cegueira cultural revela como nossos militares são educados dentro de preconceitos ideológicos completamente contraditórios com os princípios democráticos estabelecidos na Constituição da República.
Não são capazes de interpretar sua missão como sendo a defesa do povo brasileiro e de seus interesses e direitos a uma vida livre e próspera. Não estão aptos a perceber que tais direitos e interesses podem assumir diferenças às vezes de difícil resolução, mas que são todas legítimas e passíveis de acordos e compromissos inerentes à própria democracia. Para essa visão falaciosa do mundo, a esquerda e a defesa dos interesses dos trabalhadores não fazem parte da “nação” – são ideologias alienígenas.
Por trás dessa falácia reacionária está uma concepção de pátria decorrente de uma visão totalitária que supõe a nacionalidade como homogênea, a fusão das três raças, o índio, o negro e o branco do mito de Guararapes. Qualquer diversidade é vista como suspeita e corrosiva dessa unidade imaginária. Ora, seu dever é justamente defender a continuidade dessa diversidade intrínseca ao povo contra qualquer interferência, manipulação ou tentativa de imposição de interesses ou direitos de estrangeiros.
Em sua crença ideológica, os militares se veem como guardiões de uma pátria que está resumida ao espaço territorial, cuja integridade sofreria ameaças de inimigos internos aliados ao “globalismo”, eventualmente apoiados pelos culpados de sempre, o Fórum de São Paulo, o bolivarianismo ou Cuba. Não percebem que o território e suas riquezas pertencem ao povo brasileiro. Sua defesa é necessária porque faz parte da defesa deste povo. Sua missão constitucional é a proteção dos brasileiros, de suas riquezas, interesses e direitos a participar do governo e escolher representantes, ter protegida sua saúde e integridade, organizar-se pacificamente, defender ideias e opiniões livremente, desfrutar do meio ambiente e das riquezas naturais de sua terra, fazer escolhas sobre sua religião, seu gênero e sua ideologia e valores pessoais. Essa incompreensão sobre quem de fato é a Nação que devem defender é o motivo de sua incapacidade de perceber a ameaça que vem dos EUA.
Além disso, como já aconteceu com os economistas doutrinados na ideologia do livre-mercado, com os advogados treinados para fazer lawfare contra nossas instituições, também os soldados e marinheiros brasileiros vêm recebendo treinamento em escolas americanas, nas quais os valores estadunidenses lhes são incutidos. Colonizar mentes das elites dirigentes da periferia é uma estratégia de dominação muito antiga no sistema internacional.
A posição hegemônica dos Estados Unidos no mundo é o que leva a essa forma de exercício de seu poder relacional de comandar o comportamento dos demais participantes do sistema. Por isso sua pretensão de decidirem, eles, o tipo de sociedade que deve prevalecer entre nós. Quem não aceitar essa premissa terá o destino do Iraque, do Irã ou da Venezuela: cerco e tentativa de destruição. Os ataques contra os interesses brasileiros que vêm sendo feitos desde os anos 1970 do século passado decorrem de uma posição já expressa mais de uma vez por representantes do país do Norte: “brasileiro não vota!”
A missão constitucional dos militares é especificamente garantir o contrário. Brasileiro vota e o voto livre decide o que deve ser defendido pelas forças armadas contra a interferência de qualquer outra potência que queira condicionar nossa liberdade de escolha. O único país a agir dessa maneira, não há como negar, são os Estados Unidos da América.
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(1) Terapia Política publicou uma artigo sobre o livro de José Luís Fiori “A síndrome de Babel e a disputa do poder global“.