Reforma Tributária: Uma ponte progressista para o futuro

Em seu curso de graduação, o estudante de economia é exposto ao tema da tributação; no entanto, poucos são os que se dedicam com “expertise” a essa área do conhecimento. Esse também é o meu caso. Mais detidamente: faço parte do grupo de economistas que nunca se debruçou para valer sobre o referido tema, mas, mesmo assim, tem plena consciência da sua importância para a busca da justiça social e da eficiência do processo tributário, bem como, por essa razão, para a construção de uma economia mais dinâmica e do alcance de cunhas pró-civilizacionais.
Isto posto, assinale-se que a proposta de reforma tributária ora tramitando no Congresso Nacional, dado o perfil conservador prevalecente nas duas Casas parlamentares, encontrou um bom ponto de partida para ser introduzida naquele espaço institucional, a saber: o da supressão do chamado teto dos gastos com a aprovação do que ficou conhecido como Arcabouço Fiscal.
Explicando: embora tal Arcabouço possua um quê de Teto de Gastos, ele pelo menos passou a permitir que eventuais aumentos de arrecadação possam ser gastos para efeito do crescimento econômico, posto que eles, como ensina a boa teoria econômica, estão na base da geração da renda nacional (ou Produto Interno Bruto).
Com o Teto, vale sublinhar, o único gasto que estava liberado era o relativo às despesas financeiras – ou seja, ele impedia dispêndios de custeio e capital (investimento), mas não com o pagamento de juros aos sujeitos sociais que possuem títulos públicos em seus portfólios. Nesse sentido, além de operar contra a produção de riqueza real, o Teto de Gastos possuía clara natureza classista na medida em que contemplava apenas os que viviam do rentismo (isto é, uma parcela ínfima da população) – que, aliás, ainda vivem, uma vez que tal alteração é insuficiente para esse fim…
Vencida essa etapa – e ela o foi até com certa facilidade -, teve início a discussão sobre a proposta de Reforma Tributária apresentada pela área econômica/governo federal. Pode-se dizer, em coro com o que veio de ser apontado, que a proposta em tela foi bem recebida pelos governadores, prefeitos, empresários e mesmo por parte expressiva da sociedade brasileira em geral.
Salvo engano, os fatos que seguem contribuíram para esse bom acolhimento: 1) a proposta em questão partiu de outras, anteriores, o que evitou maiores estranhamentos dos muitos parlamentares que acumulavam mais de um mandato (que não são poucos, diga-se); e 2) a proposta garante aos entes federativos, notadamente aos estados e municípios, que eles não perderão receita, razão pela qual foi apoiada pela totalidade dos governadores brasileiros e, além disso, o presidente da República, o senhor Lula da Silva, se comprometeu com os municípios que eles tampouco serão prejudicados.
Sobre os municípios, aliás, a proposta permite o aumento das suas receitas via Contribuição de Melhoria incidente sobre a iluminação pública, bem como através do IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano). Na mesma perspectiva, prevê-se ainda a possibilidade de os estados, os outros entes federativos, cobrarem um novo tributo na forma de Contribuição sobre produtos primários e semielaborados produzidos em seus domínios territoriais, que poderiam ser aplicados em investimentos e obras de infraestrutura e habitação. Enfim, vislumbra-se com esses adendos – aqui apenas tangenciados – possibilitar o aumento da arrecadação e o avanço do quesito justiça social.
Porém, quiçá mais importante para a tramitação em curso, sejam os fatos que em seguida são anotados: 3) a proposta em questão reuniu três características fundamentais: a Simplificação Tributária (dada a unificação de tributos que possuem a mesma incidência), a Transparência (dada a maior simplificação e clareza do sistema tributário e consequente facilidade de compreensão da população em geral e, em especial, do empresariado) e o Incentivo à economia (dado que ao simplificar e tornar mais transparente a nova estrutura de tributação, a atual proposta reduzirá custos e, por causa disto, estimulará as decisões de produção e investimento). Tudo isso, é trivial, tende a elevar a renda nacional, o emprego e a própria arrecadação, dado o esperado aumento no nível geral da atividade econômica; e 4) a definição de um prazo razoavelmente alongado de transição, de 2026 a 2032, ao evitar imprevisibilidades para a sociedade em geral e, em particular, para o conjunto dos agentes econômicos também ‘soma’ para a redução das dificuldades de tramitação da proposta.
Voltando à dimensão da justiça social, mencione-se mais especificamente que a atual proposta de reforma tributária tem como referência a substituição do binômio tributação sobre a produção e o consumo pelo duo tributação sobre a renda e o patrimônio – como, aliás, acontece em diversos países do mundo capitalista desenvolvido. Numa frase: tributar a produção e o consumo é mais uma aberração tupiniquim na medida em que essa ‘modelagem’ conspira contra o crescimento da renda e do emprego, além de penalizar os segmentos sociais de menor poder aquisitivo da sociedade brasileira que, relativamente, resultam mais onerados do que os que auferem maiores rendimentos.
Todavia, a busca pela maior justiça social não para no que foi registrado – pelo contrário. Ilustrando, mais uma vez sucintamente, vale anotar os seguintes pontos: 1) a criação do que foi denominado de “cashback”. Essa inovação tributária, através de Lei Complementar, definirá os itens componentes de uma cesta básica de consumo, o mecanismo de restituição e as faixas de rendimentos que serão contempladas; 2) a adoção da cobrança progressiva de tributos conforme o impacto ambiental do veículo. Ou seja: quem poluir mais pagará mais. Nessa mesma linha, propõe-se que carros elétricos paguem alíquotas menores; 3) a mudança da tributação das heranças e doações, com a introdução da cobrança progressiva do ITCMD (Imposto sobre Transmissão de Causa Mortis e Doações). É dizer: maior alíquota conforme o valor da transmissão; e 4) a inclusão na lista de itens tributáveis de bens até então isentos, como o são jatinhos, iates e jet-skis, corrigindo assim a injustiça ou mesmo aberração de cobrar tributos (o IPVA, Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores) apenas dos veículos automotores, o que penalizava a imensa maioria da chamada classe média, ao passo que beneficiava os segmentos de mais elevado rendimento.
Também me parecem auspiciosos, dentre outros aspectos, os que seguem: 1) a criação de um Conselho Federativo e de um FDR (Fundo de Desenvolvimento Regional) – atendendo a uma demanda dos governadores; e 2) a referida simplificação tributária. Ela consiste efetivamente na redução de cinco para dois tributos (eliminação do ICMS e do ISS, e criação do IBS; e a eliminação do IPI, COFINS e PIS, e criação da CBS). O IBS, o Imposto sobre Bens e Serviços, apresenta característica dual, uma vez que virá a ser compartilhado por estados e municípios; e a CBS, a Contribuição sobre Bens e Serviços, ficará na alçada da União; e 3) ainda o IBS e a CBS. Pretende-se com esse novo Imposto e nova Contribuição reorganizar o sistema tributário brasileiro em bases mais justas e racionais, garantindo ao mesmo tempo a arrecadação devida e o financiamento das tão necessárias políticas públicas; 4) por fim, mencione-se que a tributação do IBS dar-se-á com base no princípio do Valor Adicionado, aliás, já existente em muitos países do chamado Primeiro Mundo. Defende-se que ele possui como positividade, dentre outros aspectos, superar a divisão conceitual existente entre o que é consumo e o que é serviço, bem como evitar a cumulatividade da cobrança nas etapas existentes da cadeia produtiva, impedindo assim o indesejado efeito cascata.
Não obstante o que analisamos até aqui, é importante registar que pelo menos cinco pontos da proposta deverão suscitar possíveis controvérsias mais intensas: a) a cobrança do IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas) – a princípio, a ideia é a de que o limite mínimo para essa cobrança seja de 15 milhões de reais; b) a mudança na tabela do Imposto de Renda, com a introdução de alíquotas maiores para rendimentos considerados ‘excessivamente elevados’ (e, combinadamente, alguma redução das que atingem os estratos médios); c) a cobrança de produtos “offshore”, tais como os vendidos pela Amazon, Shopee etc.; d) a taxação de sites de apostas (apenas nesse caso estima-se aumento da arrecadação em cerca de dois bilhões de reais); e e) a taxação passaria a ser cobrada apenas no destino e não mais, com algumas exceções, na origem. Sendo assim, é possível que haja algum tipo de tensão com os estados exportadores como, por exemplo, os do Centro-Oeste. Uma adição: provavelmente por causa disso os formuladores da proposta tenham nela previsto o recurso da isenção!
A proposta em discussão, enfim, merece elogios por buscar simplificar, tornar mais transparente e estimular o crescimento econômico. Nesse sentido, reitero a preocupação/intenção em desonerar o consumo e a produção. Não fora bastante, na sua positiva contramão, assinale-se que a tributação sobre a renda (fluxo) e o patrimônio (riqueza) operará decisivamente para a superação da atual estrutura regressiva e ineficiente. Também me parece positiva a forma como se passará a tratar as despesas vis a vis o aumento das receitas, tendo em vista a meta do déficit primário (para desespero dos economistas mãos de tesouro que, como se sabe, ‘policiam’ apenas os gastos de capital e, principalmente, os de custeio do setor público). Ademais, a ‘amarração’ dessas despesas às deliberações do Congresso colocará na sua conta eventuais ou possíveis gastos perdulários. Quiçá, junto com o enquadramento da nefanda política de juros altos praticada pelo Banco Central, essa reforma venha a ser uma verdadeira ponte progressista para o futuro; ou seja, contribua para lançar o país rumo a marcos efetivamente civilizatórios – ao permitir que os gastos públicos de custeio e capital arrastem o setor privado na senda da geração de emprego e renda sempre que isso se fizer necessário.

O autor agradece aos professores Dr. Cezar Guedes (da UFRRJ) e Dr. Helcio de Medeiros Junior (do IPP/PMRJ) por suas leituras atentas e contributivas do presente artigo. Erros remanescentes, por suposto, são da minha inteira responsabilidade.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Revisão: Celia Bartone
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