A vida pode ser bem monótona de tão previsível, além do mais no Rio de Janeiro. As ondas continuam quebrando nas rochas do Arpoador; mais um impeachment de governador; prefeito pastor preso; milícia mandando em toda a periferia e felicíssima com a queda dos impostos de importação para as armas; jovens do Leblon e seu egoísmo crônico, herdando apartamentos dos avós contaminados por eles, por se exporem sem máscaras em bares; o dilema da vacina comunista; e a deliciosa feijoada de sábado. Nada de novo. O Rio de Janeiro continua lindo.

Infelizmente, para nós, o coronavírus também é chocantemente previsível. As estimativas sobre a sua capacidade de dispersão e letalidade estão sendo fortemente corroboradas.

As testagens tomadas na cidade de São Paulo em outubro indicavam que um em cada quatro paulistanos já havia tido contato com o vírus. O número de mortes, 13.500 na época da medição, mostrava que 0,44% dos contaminados morreram. Na cidade do Rio de Janeiro, os números são mais dramáticos. Hoje, 14,3 mil pessoas morreram na cidade, o que significa cerca de – pasmem! – 0,22% da sua população total. Não há testagem no caos carioca, mas imaginando que os mesmos 1/4 da população da cidade já tenha se contaminado, os casos fatais podem chegar a 0,8% do total de pessoas expostas ao vírus. Se o Rio de Janeiro fosse um país, ele já seria o campeão de mortos por milhão de habitantes no mundo.

A letalidade quase duas vezes mais alta no Rio de Janeiro tem como causa mais provável a menor seriedade das autoridades. Mais precisamente, e de maneira bem triste, tudo indica que estejamos morrendo mais que os paulistanos por não recebermos atendimento médico apropriado.

De um modo geral, um pouco para baixo e um pouco para cima, a média dessas capitais vem confirmando as estimativas feitas a partir dos dados de Nova York, colhidos no início da pandemia. Os números lá indicavam que uma em cada 200 pessoas infectadas pelo vírus morreria. Eles são os mesmos que dizem que, potencialmente, poderíamos ter chegado a um milhão de mortes no Brasil caso não tivéssemos retardado a contaminação de nossa população com o uso de máscaras, distanciamento, isolamento social, etc.

Por outro lado, a ilusão de segurança provocada pela queda do número de mortes, de assustadoras 1.000/dia para ainda dramáticas 500/dia, também era previsível. Nas engrenagens tortuosas das mentes negacionistas, se o número de mortes não chegou ainda a um milhão, os cientistas erraram e nós já podemos ir para a rua. Se a economia não aguenta mais o confinamento, então solta o povo. Se os pais não aguentam mais os filhos em casa, então mandem eles às aulas presenciais. Se está com saudades de um chope no boteco, vai se embriagar na rua com a máscara pendurada em só uma das orelhas. Nada disso era pouco previsível, assim como não será (tem sido) o resultado.

O brasileiro comum sonha com o efeito de rebanho, enquanto quem entende da doença tem pesadelo com ele. Ainda que fosse possível atingir tal efeito sem vacina (o que é discutível), cerca de 120 milhões de pessoas teriam então que ser contaminadas antes de atingirmos o status oficial de gado, chegando a 600 mil mortes. Todos esperamos que a vacinação impeça que isto aconteça.

Mas os números são cruéis e, também de modo previsível, não têm perdoado os negacionistas. O presidente americano, talvez o mais estereotipado deles, deixou de se reeleger em um cenário onde todo o seu esforço não foi capaz de sumir com os mais de 260 mil corpos de estadunidenses (hoje, 325 mil). Com a média de mil mortes diárias no dia da eleição, assisti uma eleitora republicana dizer, em rede nacional, que o vírus era político e sumiria no dia seguinte à apuração dos votos. Quando comecei a escrever este texto, em 4 de dezembro, ou seja, um mês depois, 3 mil americanos haviam morrido por conta da Covid-19 em 24 horas. O vírus “político” não desapareceu e, nesse ritmo, quando Donald Trump tiver sido, finalmente, obrigado a largar o poder, em 20 de janeiro, 400 mil pessoas terão sucumbido à doença. Para ser mais didático sobre a situação, o negacionismo científico terá, então, somente naquele país, contribuído para a morte de algo equivalente a 10 mil ônibus lotados de pessoas.

Mas ver isso acontecer por lá não é suficiente para o brasileiro, e muito menos para o carioca. A morte precisa bater à porta de casa para que a ficha caia. E não me refiro àqueles que precisam trabalhar. Me refiro àqueles que se expõem desnecessariamente em bares, praias e festas; aos governadores, prefeitos e gestores do transporte público que fomentam aglomerações em suas frotas reduzidas de trens e ônibus; ao presidente da república que não usa máscaras e faz campanha contra as vacinas; aos negacionistas de plantão que divulgam estúpidas teses conspiratórias e curas milagrosas via redes sociais. Ignorantes, ignorantes, ignorantes.

Não há mais o que fazer ou falar. Quem bate à porta agora é a conta de nossa estupidez. Ela chegou.