No guichê 19 do balcão 20, Onésio encostou-se. O atendente meio calvo, meio baixo, meio triste demorou-se a olhá-lo. Dedilhava papéis ensebados. Página a página, lentamente, intercalando com uma lambida no dedão a cada três páginas viradas. Com ar de enfado, interrompeu-se e voltou as lentes de seus óculos de leitura para a figura de sorriso complacente de Onésio, como que a colocar-se à disposição para atendimento.
Não lhe deu tempo de cumprimentar ou ensaiar uma demanda, mal movimentara os lábios, Onésio foi interrompido pelo funcionário. “Ficha azul!”. Onésio nem sabia do que se tratava. “Não, o meu problema é que…”. “Ficha azul. A-zul. Sem ela, não posso atender.” Atalhou o atendente já lambendo o dedão para voltar à tarefa anterior.
Meio perdido, Onésio viu na moça de aparente simpatia a possibilidade de uma informação. “Por favor… Oi! Por genti…”. “Só um minuto, senhor”, respondeu a moça com um sorriso automático e logo atendendo a uma ligação. Onésio permaneceu defronte à moça, que apenas balbuciava sims, nãos e humrums. A ligação durou quase 15 minutos. “Pois não?”. “Ah, sim! Eu gosta…”. O telefone tocou novamente, levando a moça a atendê-lo em novos balbucios e monossílabos. Onésio percebeu ser inútil insistir ali.
Afastou-se, em parte para liberar o local de atendimento em frente à moça e em parte para ter uma melhor visão de onde faria a próxima tentativa. Distraiu-se por um instante com os cartazes de gente jovem de sorrisos quase gargalhantes e dentes de brancura artificial que faziam fundo a nomes de produtos, anúncios de promoções e auto elogios da empresa. “Tudo casca”, pensou alto. Reparou no quanto as pessoas de carne e osso dali eram diferentes das de papel e tinta dos cartazes. Quanto tédio, quanta artificialidade, quanta gente triste como máquina.
Lembrou-se do tempo em que trabalhava. Das empresas em que o lugar das vendas era iluminado, limpo e de aconchego modernoso. Em todos eles havia uma porta que escondia a sala dos funcionários. O lugar onde se podia deixar de lado as máscaras de empregado feliz e ser gente de verdade. Eram sempre lugares pequenos. Sempre feios. Quase sempre sem janelas. Quase sempre rançosos. Sempre desorganizados. Lugar para não se sentir bem em hipótese alguma, porque na cabeça de muitos patrões, sentir-se bem não faz parte do trabalho. É até contrário ao trabalho. Se há alegria verdadeira, não poderia haver trabalho.
Numa fila que não andava, dois homens mais velhos do que ele discutiam. Um achava o setor privado mais eficiente que o público. O outro, o contrário. Onésio não via diferença. Pelo menos não pelo lado de quem trabalha. Trabalho é trabalho, pensou. Há obediências, colegas de trabalho que não são tão colegas, chefes inseguros e tirânicos do mesmo jeito. Para quem leva a sério o trabalho, tanto faz, é uma porcaria de qualquer jeito. Ficar sem trabalhar é outra porcaria. Porque sem trabalho, também não se vive. Não se paga contas. Não se tem dignidade nesta terra de trabalhadores que só gostam do trabalho quando nele podem ser o entristecedor de gente e não quando se faz parte da gente entristecida.
Uma nova oportunidade surgiu do outro lado da sala. Onésio foi confiante de que conseguiria. A dois passos, percebeu a placa “fechado”. Suspirou e foi-se embora. Sem saber bem o porquê de a gente inventar tanta coisa para entristecemos uns aos outros.
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Ilustração: Mihai Cauli
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