Aos que estavam interessados na busca da verdade, o mestre Hegel sugeria que duvidassem. Esse deveria ser obrigatoriamente o primeiro ato, o ato fundacional por assim dizer de todos aqueles que pretendessem desvelar a sempre misteriosa realidade para enfim se deparar, para além da enganosa aparência das coisas, com as complexas camadas do real. Mas isso é o que aconselhava o velho Hegel lá pelos tempos que lhe tocou existir, os idos da revolução francesa e da era napoleônica (já me referi a ela aqui não faz muito, você se recorda), o alvorecer do tão prometedor mundo moderno.
Que duvidássemos!
Mas o que nos pedem agora os meios de comunicação, também eles mais que modernos? O que sem ruborizar nos sugere a free press do mundo livre, parido daquela era afinal não tão distante assim? Que de olhos fechados acreditemos. E de joelhos rendamos homenagem ao totem inatacável, ela própria, representação, cerne e alma daquela revolução que para o filósofo de Stuttgart era a tentativa de instaurar o reino “da liberdade absoluta” (die absolute Freiheit). Pobre Hegel. A razão substituída pela mais rasa das crenças numa salada de informações impudentes (as mais recentes manchetes anunciam violações de crianças e idosas às quais se somam a utilização de armas químicas – como as de Saddam Hussein, lembram?). E como os fiéis na missa de domingo, lhes concedamos a graça da nossa benevolente crendice. Cada mensagem emitida desde o santo altar tem o sagrado poder das verdades absolutas. E assim seguimos.
A unanimidade ampara e alimenta o descalabro (Zelensly)
Quantas vezes na história um só homem, um político comum, de um pequeno país, de histórico no melhor dos casos controverso, se viu amparado por tamanho suporte político, moral, econômico e militar quanto o atual presidente da Ucrânia? Todos os pesos pesados do ocidente o acolhem como a um semideus que representa o bem e a civilização no combate contra as forças das trevas.
Numa ação historicamente inédita, as mais nobres casas parlamentares da Europa, além do mais que nobre Congresso Americano, se reúnem em sessões extraordinárias para ouvir suas comoventes mensagens de socorro e condenação do invasor bárbaro. Convenhamos, isso afeta o espírito e o ego de qualquer um, mesmo do mais equilibrado e razoável dos homens públicos (um César ou um Marco Aurélio, por exemplo, que são raros os que existiram), o que definitivamente não parece ser o caso do ucraniano (um a mais nessa magnífica safra de políticos mais que modernos que nos brindou o início do milênio – Berlusconi, Orbán, Yeltsin, Trump ou Boris Johnson, cuja menor proximidade com relação ao genitor político de Putin é o prenome…). E retira das frases de Zelensky qualquer inibição cabível ou o mais simples bom senso.
Numa das suas inúmeras atuações publicitárias ele lê, contrito, o texto cuidadosamente preparado:
- “Geralmente, presidentes não fazem pronunciamentos como este. Mas hoje, após o que foi revelado em Bucha e em outras cidades das quais os ocupantes foram expulsos, eu preciso dizer isso. Centenas de pessoas foram mortas, torturadas e civis executados. Corpos nas ruas. Áreas minadas. Até os corpos dos mortos foram minados. O mal concentrado invadiu nossa terra. Assassinos, torturadores, estupradores e saqueadores que se autodenominam como ‘exército’ e que merecem apenas a morte após o que fizeram. Eu quero que as mães de todos os soldados russos vejam os corpos dos mortos em Bucha, Irpin, Hostomil. O que eles fizeram? Por que foram mortos? O que o homem que andava de bicicleta pela rua fez? Por que as pessoas comuns foram torturadas até a morte? Por que as mulheres foram estranguladas depois que seus brincos foram arrancados de suas orelhas?”.
Oh! Essa é uma verdadeira pérola. E isso produz efeito, não resta dúvida. Se é verdade ou não, pouco importa. Quem se interessará em comprovar? Para quê indícios, ao menos indícios de que essas atrocidades foram cometidas pelos invasores? A verdade é um a priori desde há muito decretada por um dos lados da contenda, parte fundamental do seu arsenal bélico. As palavras do presidente, sejam quais forem, referendadas pelos mais respeitados jornais e telejornais do mundo próspero serão sempre inquestionáveis e mais que suficientes. A comoção se esparrama como um tsunami devorando qualquer intento de verificação, qualquer necessidade de comprovação.
- “Como mulheres podem ser estupradas e mortas na frente de seus filhos? Como seus corpos podem ser violados mesmo após a morte?”
O horror! O horror!
Nenhuma foto, nenhum registro, nenhum depoimento, nenhuma imagem ou conjunto de imagens como aquelas de Sabra e Chatila. Para quê, se a verdade está do nosso lado? Se a possuímos e somos seus portadores. Mas sigamos em frente. Aqui temos a palavra do novo paladino da causa humana, o Davi do mundo civilizado e, lá atrás, no comando do grande espetáculo, o Comandante em Chefe dos exércitos do bem decretando quem é o mal e nos alertando contra seu repertório de ações maléficas.
Desde que lá por meados de março Biden lançou a palavra de ordem “criminoso de guerra” contra Putin, não passa dia sem que seja anunciado um novo massacre, um novo genocídio. Terminada essa guerra e teremos provavelmente a mais extensa lista de atrocidades desde que os conceitos de crimes contra a humanidade e genocídio foram criados lá pelos anos 1930-1940 e Putin, naturalmente, deixará para trás todos os sentenciados em Nuremberg.
E, no entanto, bastaria que nossos bons e livres e independentes meios de comunicação cumprissem o trato implícito que nas democracias nascidas da Revolução Francesa (e dos tempos em que viveu o velho e bom Hegel) supostamente têm com os cidadãos.
Se não lhes cabe trazer à luz as complexas camadas do real, tarefa destinada aos filósofos, que pelos menos colocassem em dúvida os discursos oficiais e investigassem os fatos que eles anunciam – e nos contassem um pouco de cada um dos lados, de todos os discursos e de todos os bandos. E pudessem, então, fazer a mesma pergunta que fez uma matéria recente do El País cujo título era: Como se conta a guerra na Rússia? Ampliada e alimentada pelas regras do mais basal jornalismo (presentes nos manuais de redação) a mesma pergunta deveria se voltar para os relatos da guerra do lado de cá e o mesmo El País poderia, então, titular: Como se conta a guerra no Ocidente? Mas isso não será feito, nem em segredo isso será feito. O tamanho da vergonha não o permitiria. Porque já se foi um largo tempo desde que a covardia e a subserviência congelaram a decência.
E assim seguimos.
Putin e Zelensky (duas faces de uma mesma tragédia)
A espessa cortina de fumaça criada para proteger a figura do presidente ucraniano e seu governo é a mesma utilizada para mitificar a imagem do russo. E quem afinal é esse sujeito que agora ocupa o posto de arqui-inimigo do pacífico mundo ocidental (um tipo de personagem que sempre haverá de existir, seja para desviar a atenção das nossas próprias e imensas iniquidades, seja para manter em movimento essa esplêndida fábrica de progresso técnico e enriquecimento da fulgurante economia imperial, a indústria bélica, seja para recompor a frágil beleza da nossa imagem refletida no espelho através da fabricação do horror na figura do outro)?
Os mais desavisados talvez ainda o considerem uma derivação, um aperfeiçoamento genético ou um herdeiro dos anciãos que administravam a extinta URSS. Mas Vladimir Putin é, como escreveu recentemente Pablo Iglesias (um dos mais brilhantes líderes da esquerda europeia nessas duas primeiras décadas do século), não é outra coisa que não “um maldito autocrata anticomunista”.
Ainda assim, mesmo sendo o que é, a mania da história em nos impor suas amargas ironias fez com que essa cria de Boris Yeltsin (sim, ele, o borracho populista) se fizesse obstáculo à expansão da hegemonia do Império no velho continente. E isso conta. Descemos a tal ponto e vivemos numa tal geografia política que necessitamos de um Putin e sua guarda pretoriana de ex-espiões da KGB e apadrinhados oligarcas bilionários para evitar que nosso encantado mundo próspero não se faça ainda mais inóspito. Ou será difícil imaginar uma Europa-Eurásia, de oeste a leste, da Islândia ao Cabo Dezhnev, toda iluminada pelas bandeirinhas (e pelos protetores mísseis) da encantadora OTAN? Temerários podem ser todos eles, mas os contrapesos sempre ajudam a conter, ao menos em certa medida, os descalabros e as tentações dos egos mais atrevidos e dos interesses mais abusados.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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