Enquanto isso, Bolsonaro segue ajoelhado no pescoço da democracia brasileira

Foto: Wilton Júnior/Estadão

Um repórter pergunta a Nelson Rodrigues, que era um torcedor apaixonado do Fluminense, o que ele estava fazendo no Maracanã num dia de clássico Flamengo x Vasco da Gama. “Vim torcer contra os dois”, teria respondido o escritor.

Verdadeira ou não, a história se repete na esfera política, com muita gente torcendo contra o governador afastado e também contra a decisão monocrática do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, de afastá-lo do cargo. O afastamento era do interesse do presidente, que vem aparelhando as instituições do Estado à luz do dia, sem o menor pudor, visando a se proteger e a proteger a família das investigações em curso. E objetivando também perseguir os adversários políticos, todos eles tratados como inimigos irreconciliáveis.

No caso do Rio, a substituição do superintendente da Polícia Federal, foi a primeira iniciativa neste sentido. O afastamento de Witzel cumpre dois objetivos: detonar o futuro concorrente ao Palácio do Planalto e garantir um substituto dócil, que terá a missão de indicar o novo procurador-geral do Estado no final do ano. Com um novo procurador, também dócil, adeus investigações – a família poderá respirar aliviada, sem os sobressaltos diários provocados pelas revelações do envolvimento em diversos esquemas de corrupção.

O professor da faculdade de Direito da USP, Rafael Mafei Rabelo Queiroz, diz que a decisão monocrática de afastamento do governador foi ilegal. O ministro do STF, Marco Aurélio Mello, diplomático, diz que foi uma decisão precipitada. Mas, nesta quarta (2/9), o pleno do STJ se reuniu e manteve o afastamento por 14 votos a 1.

O único que votou contra o afastamento foi o ministro Napoleão Nunes Maia. Ele foi categórico ao dizer que o fato de o governador não ter sido ouvido era inadmissível. E perguntou por que não se aguardou o desfecho do impeachment na Assembleia Legislativa, que é o fórum adequado para tomar este tipo de decisão. Para o ministro Napoleão, os deputados estaduais, que têm mandato popular, é que deveriam cuidar dos aspectos políticos e o STJ deveria se ater a questões eminente jurídicas. Com essa fala, ele pareceu concordar com a tese de que houve, sim, interferência política na decisão de Benedito Gonçalves.

Desde a Lava Jato, várias instâncias do poder judiciário vêm criminalizando a atividade política, julgando e condenando com base em suposições ou convicções, várias vezes ao arrepio das leis. O que leva muita gente a se desiludir com o regime democrático. Quem não tem o que reclamar é Bolsonaro, que segue ajoelhado no pescoço da democracia brasileira.

Uma das funções de um deputado é batalhar para conseguir verbas do governo para os municípios de sua região. Tanto que os parlamentares, quando conseguem essas verbas, posam para fotos ao lado do chefe do Executivo e divulgam amplamente nas redes sociais. Mas, a PGR parece não saber disso. Na denúncia que formulou, e foi aceita pelo STJ, essa atividade é criminalizada:

“O repasse de recursos para os municípios, mais do que propiciar desvio em retorno para os deputados, funciona como verdadeira forma de cacifá-los junto aos eleitores locais e não menos relevante de fazer de seus aliados prefeitos e vereadores. O apoio econômico de deputados a municípios é ferramenta de criação de currais eleitorais, haja vista que obras e serviços prestados repercutem na população, que os atrela à figura pública que conseguiu os recursos”.

A denúncia da PGR se baseia na delação do ex-secretário de Saúde do Estado, Edmar Santos. O texto chega a falar que o repasse de recursos para os municípios propicia “desvio em retorno para os deputados”. Mas não apresenta sequer um elemento comprobatório dessa afirmação.

O vice-governador, Cláudio Castro, assumiu como governador interino depois de passar negociando alguns dias em Brasília. Caso fosse também afastado, quem assumiria o governo do Estado seria o presidente da Assembleia Legislativa, André Ceciliano, que é do PT, o que deve ter tirado o sono de Bolsonaro. Isso pode explicar as buscas e apreensões nos seus endereços e no seu gabinete na Assembleia Legislativa.

Wilson Witzel, claro, não é flor que se cheire. Mas tem o direito de ser julgado respeitando-se, antes de qualquer punição, o seu direito de se defender. Durante a campanha, patinou lá embaixo nas pesquisas de intenções de votos e não conseguia decolar. A melhor marca que conseguiu foi de 14% na véspera do 1º turno. Abertas as urnas, a grande surpresa: ele obteve mais de 41% dos votos. E no segundo turno, disputando com Eduardo Paes, venceu com praticamente 60% dos votos.

E como ele conseguiu chegar lá sendo um neófito em política? Quando decidiu concorrer, e após ser esnobado por próceres do MDB, procurou o pastor Everaldo Dias, presidente do PSC, hoje preso, que acreditou no seu potencial. Para o pastor, em tempos de Lava Jato, um juiz de direito teria grande chance.

O costume de mentir é uma marca que o acompanha há muito tempo. Na campanha, divulgou que a juíza Valéria Caldi Magalhães o considerava uma máquina de sentenciar. Em nota, a juíza negou ter feito tal afirmação. Na dissertação de mestrado de Witzel, nada menos que 63 parágrafos são recorta e cola das obras de seis autores. Cinco deles não são citados nem nas referências bibliográficas. Quando fazia doutorado em Ciência Política na UFF, “informou” que tinha cursado parte do doutorado na Universidade Harvard. Depois que a imprensa descobriu a fraude, a mentira foi retirada do currículo.

Durante a campanha eleitoral, colou nas campanhas de Flávio e de Jair Bolsonaro, o que lhe garantiu, de bandeja, o apoio de grupos de milicianos e da Igreja Universal do Reino de Deus. As milícias contrataram pessoas de algumas comunidades pobres para distribuir santinhos, com as fotos dele e de Bolsonaro, e agitar bandeiras da candidatura. Na antevéspera da eleição, a Universal enviou quatro picapes lotadas com material de campanha, que foi distribuído por pastores em nada menos que 350 templos do Estado.

Nos discursos, Witzel procurou se mostrar afinado com as propostas dos bolsonaro. Entre outras ideias, disse que iria acabar com a bandidagem no Estado – “policial tem que mirar e atirar na cabecinha” –, criar escolas militares e garantir defesa jurídica para policiais que matam em serviço. Ele participou do ato em que foi destruída uma placa de rua simbólica, de homenagem à vereadora assassinada, Marielle Franco. Na Associação de Oficiais Militares Estaduais do RJ, reafirmou sua política de segurança genocida e belicista: “Não vai faltar lugar para colocar bandidos. Cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota navio em alto mar.”

Já empossado, procurou deixar claro que a violência policial teria nele um apoiador decidido. Entre outras exibições, posou empunhando uma metralhadora Browning, calibre 30, apareceu vestido com uniforme do Bope e também treinando tiros. Quando soube que o sequestro de um ônibus na Ponte Rio-Niterói tinha terminado com a morte do sequestrador, ele voou para o local. Assim que o helicóptero posou na pista da Ponte, um de seus auxiliares desceu primeiro e gravou sua saída e a corrida até o ônibus, pulando e dando socos no ar como se estivesse comemorando uma conquista esportiva.

Com um governador que pensa e age como ele, cresceram os casos de violência policial, mas apenas nas áreas carentes. Como foi o caso do menino João Pedro, assassinado por policiais dentro de sua casa, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Em maio passado, quando a polícia matou 13 pessoas no Complexo do Alemão, o New York Times, publicou uma reportagem sob o título “Policiais militares têm ‘licença para matar’ no Estado do Rio”. O jornal informava que, em 2019, policiais do Rio tinham batido o recorde, matando 1814 pessoas. Isso significa uma pessoa morta pela polícia a cada cinco horas. Esse é o resultado da política de (in)segurança defendida por Bolsonaro e Witzel.

Agora, desabou sobre a cabeça do governador afastado e da primeira-dama uma penca de acusações de corrupção, o que pode tornar natimorta sua meteórica carreira política. Mas, qualquer punição a ele deve ser resultado do devido processo legal e não dos interesses da família no poder. Aliás, já está passando da hora de a Justiça investigar, além de Everaldo Dias, outros pastores e bispos que, passando o rodo nas economias dos fiéis, tornaram-se milionários e bilionários, como, por exemplo, Waldemiro Santiago, Silas Malafaia e Edir Macedo.