O homúnculo e o bolsonarismo

“Política é magia. Quem sabe invocar as forças das profundezas, a este seguirão.”
Hofmannsthal citado por Carl E. Schorske em Viena Fin-de-Siécle

Tanto quanto o Estado e a política moderna, nós, os cidadãos que legitimamos esse Estado e essa política, somos filhos do Iluminismo. Mesmo que já um tanto quanto descrentes, seguimos nos esforçando para acreditar na razão e na racionalidade como guias de conduta e da vida em sociedade, na palavra como mecanismo do pacto que vigia as paixões e os comportamentos e negocia as possibilidades de mudanças (apesar de tudo e meio insensatamente, mantemos a fé na ideia de progresso e avanço da vida social) e garante a convivência entre as diferenças – mesmo as mais absurdas e injustas. Longínquos talvez, renitentes, mas ainda assim, herdeiros de uma tradição básica. Quem sabe apenas para podermos dormir sem temer que vençam as sombras: sempre à espreita, prontas para capturar nossas ações e conduzir nossas vontades.

Foi mais ou menos o que me ocorreu ao assistir ao encontro entre o recém-eleito deputado Gilherme Boulos e um quase púbere deputado bolsonarista, também recém-eleito por Minas Gerais. Trata-se, se não me engano, do recordista de votos no país, com mais de um milhão de eleitores, e do qual não me recordo o nome – passada uma, quando muito duas legislaturas e provavelmente não se recordarão dele tampouco aquelas dezenas de milhares de seres que por uma ou outra razão o elegeram. A cada esforço do deputado paulista para trazer o debate para o nível da argumentação lógica e do compreensível, o interlocutor respondia com a impecável lógica da incoerência crônica.

Um desarrazoado radicalmente nec caput nec pedes, como diriam os antigos romanos.

Até poderia ser engraçado, mas não era. Evidentemente não era. Porque nada há de divertido nessa perigosa pulsão que move, não é de hoje, o espírito de milhões de brasileiros e que, ao contrário do que gostaríamos, apenas vem ganhando fôlego. Há uma ameaça pandêmica infestando a atmosfera e embora tenhamos voltado a sentir esperança, um medo enorme nos acompanhará às urnas no próximo domingo. E ainda que o resultado das urnas o afastem parcialmente, esse medo estará ali, esparramado no tempo, como uma mancha que torna o ar pesado, difícil de respirar.

Pode me ter faltado neurônios, mas não boa vontade para tentar compreender a fala do novo parlamentar. Lembro-me de uma das assertivas: “na favela onde nasci”, disse a certa altura. E onde também havia se encontrado com o governador reeleito de MG, que ao que se sabe não nasceu numa favela – o governador Romeu Zema “é bisneto do empresário Domingos Zema, criador do Grupo Zema, composto por empresas que operam em cinco ramos: Varejo de Eletrodomésticos e Móveis, Distribuição de Combustível, Concessionárias de Veículos, Serviços Financeiros e Autopeças”, informa a Wikipedia – para fraternalmente, como gente da mesma estirpe ou classe, esboçarem projetos humanitários. O que eu não conseguia, por mais que me esforçasse, era encontrar os eventuais nexos, quaisquer que fossem, entre as sentenças proferidas. Talvez muito mais fácil fosse compreender as explicações de Adorno sobre o dodecafonismo de Schoenberg.

Aqui talvez esteja o x da coisa: para seus eleitores (e me corrijo: quase um milhão e meio de almas, exatos 1.492.047 votos), pouco importa que não exista liga, coerência ou lógica interna entre as orações do ungido. No entanto, esse amontoado de incongruências serve para nutrir o ódio, incrementar o combustível pulsional e, ao mesmo tempo, reforçar os vínculos de identificação. O monstro se alimenta do vazio. Bastam-lhe os rótulos. O nada. O breu. Além das ameaças permanentes contra os adversários. Mas o que importa acima de tudo a esse rebanho de fiéis é que se sintam, eles mesmos, cada um deles, encarnados, incorporados na figura do eleito. Ao contemplá-lo à distância, precisam ver a própria imagem refletida no espelho opaco escondido no canto do quarto.

Identificação

Quem teria a temeridade de imaginar, dois ou três anos atrás, mesmo no mais delirante dos sonhos, que Lula poderia compor e liderar uma frente política que reunisse enfáticos apoiadores como Xuxa e Armínio Fraga, Pedro Malan e Celso de Mello, Fernando Henrique e Angélica, Emicida e Felipe Neto, Aloysio Nunes e Joaquim Barbosa, Cesar Maia e Simone Tebet, Delfim Neto e André Lara Resende, Paolla Carosella, Claudia Costin e Fátima Bernardes? A lista ronda o espanto para quem lhe contempla tanto o tamanho quanto a diversidade. Pode ser que até o Merval Pereira e seus chefes no topo da cadeia apertem o 13 daqui a três dias. É a quintessência do inimaginável. Mas que sejam bem-vindos. Nunca antes neste país… Provavelmente nunca antes em qualquer outro país se chegou a um acordo com tal abrangência, de interesses tão variados e um único, declarado e sólido ponto de solda: o medo do insondável, do submerso, das sombras que avançam para solapar os mais básicos dos acordos construídos pela sociedade moderna.

Ainda assim, essa resistência, essa repulsa ativa contra o mito e as energias obscuras que o alimentam podem não ser suficientes. Às vezes até parece que quanto mais se agregam as forças da razão mais cresce o fervor do submerso.

A essa altura, era de se esperar que a eleição estivesse cabalmente definida. As principais pesquisas dessa última semana são unânimes e mostram um quadro de extrema estabilidade, com Lula prestes a receber de volta as chaves do Palácio do Planalto. O brutal episódio da tarde de domingo passado envolvendo o aliado de primeira hora e este que talvez seja o símbolo mor do antipetismo pode ter sido a gota d’água para liquidar qualquer inversão na apertada tendência de vitória. Se isso se confirmar, será, no entanto, o resultado mais estreito de todas as disputas que Lula venceu (61,27% a 38,73% contra José Serra em 2002, uma diferença de 22,54 pontos percentuais, 60,83% a 39,17% contra Geraldo Alkmin em 2006, com 21,66 pontos de diferença). Com a usual margem de erro dos 2% para mais ou para menos, as pesquisas da semana que antecede a eleição estão informando uma diferença de não mais que oito pontos percentuais. Na melhor das expectativas e com o agravante de que agora, à diferença dos pleitos de 2002 e 2006, há essa frondosa frente política e social amparando o petista.

Portanto, mesmo que as pesquisas se confirmem e as urnas mandem o mito de volta para a caverna de onde jamais deveria ter saído (o reino da obscuridade e do ressentimento encalacrado, dos autocratas e chefetes de bando e da violência bruta), o medo permanecerá. Não apenas pelo assombroso Congresso eleito no dia 2. É claro que isso será um obstáculo permanente e de uma dimensão nada desprezível para o eventual governo Lula. O que mais assusta é a resiliência, pelo menos, dessa massa de fiéis enfurecidos. E, ao contrário do que a campanha bolsonarista quer agora fazer crer, a figura de Roberto Jefferson e sua ensandecida pregação está longe de ser um fenômeno periférico, encravado numa cidadezinha do interior do Rio de Janeiro. Esses eleitores, eles sim, são a grande sombra que encantoa o país e essa nossa democracia tão duramente arrancada.

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As “forças do preconceito… e do ódio…, que se julgavam dissolvidas pela luz da razão e domínio da lei” ressurgem “com um ímpeto avassalador”, lembra Schorske, ao comentar a vida social da capital do império austro-húngaro entre os derradeiros anos do século XIX e o sombrio parto do XX. Ali, naquele alvorecer do novo século, a universal pátria dos homúnculos das cervejarias começava a engatinhar. E esses homúnculos, é importante que não nos esqueçamos, nunca deixaram de existir. Eles apenas se amoitam, para na primeira oportunidade deixarem de lado aquela atávica inibição dos homens pequenos.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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