De 22 a 24 de outubro aconteceu a 16ª Cúpula do BRICS, em Kazan, Rússia. A reunião foi muito importante, e acontece em um cenário em que dois dos países-membros fundadores do grupo, China e Rússia, assumem forte protagonismo em escala internacional, especialmente do ponto de vista econômico e da disputa hegemônica nesse campo (China) e militar (Rússia).
Foi o primeiro encontro do BRICS também depois da inclusão de novos membros no ano passado. Aprovados para a entrada Argentina, Egito e Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, de fato estiveram operantes plenamente apenas quatro desses países (a Argentina de Milei declinou do convite, e a Arábia Saudita tem mantido uma postura de frieza em relação ao grupo, embora não tenha formalmente se afastado).
O BRICS, desde o seu início, tem um papel político importante como um coletivo de países contra hegemônico – em relação ao G7, por exemplo, grupo de países capitalistas avançados, liderados pelos EUA, ao qual se agregam Canadá, Japão, Reino Unido, França, Itália e Alemanha, embora talvez não exista um consenso sobre qual é exatamente a contra hegemonia que querem construir conjuntamente. O grupo tem também um papel importante no interior do G20, que se reúne esse ano no Brasil, no Rio de Janeiro, em novembro.
Outro ponto importante que tem caracterizado o BRICS desde o seu início é a possibilidade de criarem em conjunto novos mecanismos econômicos e financeiros no cenário internacional. Exemplo disto foi a criação, na Cúpula de Fortaleza, no Brasil, em 2014, do Acordo Contingente de Reservas (uma espécie de consórcio entre as reservas internacionais dos países membros do grupo para ser usado, mediante condições, em situação de crise cambial – leia-se, de forma resumida, que especuladores que resolverem se confrontar com países do grupo teriam que enfrentar as trilionárias reservas cambiais chinesas) e do chamado Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco do BRICS, já em operação e com projetos sendo financiados, completando dez anos de criação.
Assim, essas duas faces – a geopolítica e a econômico-financeira – foram importantes no grupo desde o começo. E seguiram sendo na reunião de Kazan (para quem quiser ler, o conjunto da Declaração Final da reunião está disponível no site do Itamaraty em XVI Cúpula do BRICS – Kazan, Rússia, 22 a 24 de outubro de 2024 – Declaração Final — Ministério das Relações Exteriores).
Valem aqui alguns breves comentários sobre as decisões de Kazan, dos muitos que poderiam ser feitos sobre essa importante reunião.
O ponto 3 da declaração é importante: “Reafirmamos nosso compromisso com o espírito do BRICS de respeito e compreensão mútuos, igualdade soberana, solidariedade, democracia, abertura, inclusão, colaboração e consenso. Tomando por base as Cúpulas do BRICS nos últimos 16 anos, estendemos o compromisso de fortalecer a cooperação no BRICS expandido sob os três pilares de cooperação, política e de segurança, econômica e financeira e cultural e interpessoal, bem como de aprimorar nossa parceria estratégica em benefício de nossos povos por meio da promoção da paz, de uma ordem internacional mais representativa e justa, de um sistema multilateral revigorado e reformado, do desenvolvimento sustentável e do crescimento inclusivo.” Tão importante, que está resumido no slogan da reunião (“Fortalecendo o multilateralismo para o desenvolvimento e a segurança globais justos”).
As possibilidades de ampliação do grupo se dão agora com uma nova categoria de membro, o parceiro BRICS. Isso em um quadro em que a estrutura e governança do BRICS assumidamente segue em construção, como apontado no ponto 5 da Declaração – “5. Saudamos o considerável interesse dos países do Sul Global no BRICS e endossamos as Modalidades da Categoria de País Parceiro do BRICS. Acreditamos firmemente que a ampliação da parceria do BRICS com os EMDCs contribuirá ainda mais para fortalecer o espírito de solidariedade e a verdadeira cooperação internacional para o benefício de todos. Comprometemo-nos a promover ainda mais o desenvolvimento institucional do BRICS”. EMDCs são os chamados países caracterizados como mercados emergentes e países em desenvolvimento (“emerging markets and developing countries”, formando o EMDC da sigla em inglês).
Não foi divulgado junto com a Declaração, mas após a reunião circulou o nome dos países que estão se integrando agora: Argélia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. Países com perfis bastante diferentes entre si e do BRICS original. Só para citar uma questão, a Turquia, por exemplo, é membro da OTAN, a aliança militar liderada pelos EUA. Alguns dos que entram agora, como Turquia e Indonésia, também são membros do G20. Da América Latina passam a participar Bolívia e Cuba.
Nessa região também se deu a grande polêmica sobre novos ingressos, com a questão da resistência do Brasil à entrada da Venezuela no grupo, mesmo com a ida do presidente venezuelano Maduro a Kazan, a convite do país anfitrião, a Rússia. A questão venezuelana já deu, e seguirá dando pano para mangas com o Brasil, porque os atritos se avolumaram desde o processo eleitoral na Venezuela, e foram reforçados pela posição contrária do Brasil ao ingresso da Venezuela no grupo. Lembrando que a Venezuela tem fortes e importantes parceiros no grupo, como China (econômico) e Rússia (militar), além de Cuba e Turquia entre os que entram agora. Esperemos os desdobramentos, mas seguramente isso representará um certo desgaste diplomático do Brasil.
Cabe aqui observar que o discurso do ministro Mauro Vieira, de Relações Exteriores, que chefiou a participação brasileira na reunião do BRICS (vale lembrar que o presidente Lula sofreu, às vésperas de sua viagem a Kazan, um acidente doméstico que resultou em pontos na nuca e uma orientação médica para não viajar) foi um discurso muito mais de considerações sobre a geopolítica internacional do que sobre temas econômicos, embora os cite, o que muda um pouco o enfoque brasileiro nos debates no interior do BRICS. Vale a pena ver o discurso, disponível também na página web do Itamaraty, em Discurso do Ministro Mauro Vieira na Sessão Plenária da Cúpula do BRICS com países convidados – Kazan, 24 de outubro de 2024 — Ministério das Relações Exteriores). Esses temas da institucionalidade e geopolítica internacional tomam a Declaração basicamente do ponto 6 ao 56.
A partir do ponto 57 até o 118, a Declaração discorre largamente sobre a temática econômica e financeira, mas também sobre meio ambiente, saúde, ciência e tecnologia, educação e outros temas. Isso mostra que a agenda comum vem crescendo.
Aqui, cabe ressaltar os pontos 64 a 68, que falam da construção de uma nova ordem financeira global e da possibilidade de alavancar trocas em moedas locais, alguns dos pontos-chave de conflito com os EUA. Neste âmbito, vale observar o ponto 65 (“Reiteramos nosso compromisso de aprimorar a cooperação financeira dentro do BRICS. Reconhecemos os benefícios generalizados de instrumentos de pagamento transfronteiriços mais rápidos, de baixo custo, mais eficientes, transparentes, seguros e inclusivos, baseados no princípio da minimização das barreiras comerciais e do acesso não discriminatório. Acolhemos o uso de moedas locais em transações financeiras entre os países do BRICS e seus parceiros comerciais. Incentivamos o fortalecimento das redes de correspondentes bancários dentro do BRICS e a permissão de liquidações em moedas locais, de acordo com a Iniciativa de Pagamentos Transfronteiriços do BRICS (BCBPI), que é voluntária e não vinculante, e esperamos novas discussões nessa área, inclusive na Força-Tarefa de Pagamentos do BRICS”). E esse ponto não fica em abstrato, pois é reforçado pelo ponto 67 (“Encarregamos nossos Ministros das Finanças e Governadores de Bancos Centrais, conforme apropriado, de continuar a considerar a questão das moedas locais, instrumentos e plataformas de pagamento e nos apresentar os resultados até a próxima Presidência”.) Ou seja, até a reunião seguinte do BRICS (coincidentemente, no Brasil, onde foram formalizadas as aprovações do Acordo Contingente de Reservas e do Banco do BRICS) se deve ter uma proposta final, cuja elaboração estará a cargo dos ministros de Fazenda e bancos centrais. Ou seja, temos uma orientação geral e um prazo final para resolver. A ver o que pode acontecer, pois pode ser tenso.
A reunião não parece ter sido simples, mas os temas da agenda eram tão importantes quanto espinhosos, e refletem exatamente a importância geopolítica de um grupo em crescimento e o protagonismo no cenário internacional de vários de seus membros. Em um mundo que não é caracterizado especialmente por um ambiente de paz e entendimento, é provável que os movimentos do grupo sejam respondidos nos próximos meses, quer pela reunião do G20 no Rio de Janeiro, quer pelo processo eleitoral nos EUA. A ver o que nos aguarda na reunião do BRICS do ano que vem, no Brasil.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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