Acompanhamos vários processos eleitorais que ocorreram pelo mundo recentemente, inclusive com comentários aqui neste blog. Vale a pena, agora, analisarmos alguns desdobramentos políticos recentes.
O primeiro caso, para quem acompanhou artigo anterior por aqui (“Eleições na África do Sul: problemas à vista”, de 02/06/2024) é o da formação do novo governo sul-africano. O presidente Ramaphosa foi reeleito. No regramento politico da África do Sul, os eleitores elegem o Parlamento, e este elege o presidente, que pode também ser retirado a qualquer momento, caso se forme outra maioria no Parlamento. Mas a composição para a sua eleição, já que o seu partido, o Congresso Nacional Africano, não conseguiu maioria parlamentar, foi com os antigos opositores da Aliança Democrática (partido herdeiro dos anteriores governos de minoria branca) e com o Partido da Liberdade Inkhata, um partido da etnia zulu, mas conservador, e com forte base regional em KwaZulu-Natal, uma das províncias.
Essa coalizão, além de eleger o presidente e governar, deve aglutinar mais de dois terços do Parlamento (o CNA teve cerca de 40%, a Aliança Democrática 22% e o Partido da Liberdade Inkhata cerca de 4%, e devem arrastar mais algumas pequenas siglas), mas a coalizão do CNA e a AD deve ser altamente instável, dada a rivalidade histórica entre os dois grupos – enquanto o CNA sempre caracterizou a AD como o partido de continuidade dos velhos defensores do “apartheid”, a AD caracteriza o CNA como um partido baseado na corrupção. Além disso, o programa econômico da AD é altamente liberal, o que difere bastante da tradição econômica dos governos do CNA. Finalmente, abre um espaço para uma oposição econômica e social pela esquerda, capitaneada pelos partidos do ex-presidente Zuma (que teve 15% dos votos) e o partido Combatentes da Liberdade Econômica (10%), que nunca existiu nesta proporção na África do Sul. Provavelmente, teremos um governo instável e o crescimento da luta social em uma África do Sul que já vem em crise.
Mais recentemente, tivemos eleições no Irã, em uma eleição solteira para a Presidência, convocada por causa do acidente com um helicóptero, que causou a morte do anterior presidente Ebrahim Raisi. Neste processo eleitoral, foi eleito o “reformista” (o termo, usado na política iraniana, normalmente se refere a um afastamento maior em relação à elite religiosa que detém muito poder de fato) Masoud Pezeshkian, um médico e há muitos anos deputado e que já teve cargo de ministro em governo anterior, da minoria étnica azeri (os persas são maioria no país). Pezeshkian derrotou o ultraconservador (de novo, esses termos aplicados à política iraniana normalmente se referem ao suporte à teocracia instalada no país) Said Jalili. O presidente tem tarefas de governo no Irã, enquanto que as tarefas de Estado, como o controle das Forças Armadas, por exemplo, são do chamado Líder Supremo, que é exercido por uma figura religiosa, o Aiatolá Ali Khamenei, desde junho de 1989.
O presidente eleito Pezeshkian tem margem estreita de autonomia dentro do quadro iraniano, mas um dos pontos principais de sua campanha foi a questão da retomada das negociações nucleares do Irã com o mundo, o que serviria para distensionar um pouco a região do Oriente Médio. Outro ponto diz respeito à flexibilização de algumas exigências feitas pelos radicais religiosos, como o uso de véus por mulheres, muito contestado no período recente, e que provocou uma onda de protestos no país. Vale lembrar que, desde o começo desse ano, o Irã (junto com os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita, a Etiópia e o Egito) passa a ser membro do BRICS, agrupamento internacional do qual o Brasil participa junto com Rússia, Índia, China e África do Sul.
No mesmo momento em que acontecia o segundo turno das eleições presidenciais iranianas, aconteceram também eleições para o parlamento inglês, com uma acachapante vitória eleitoral dos trabalhistas sobre os conservadores, mudando o governo conservador depois de catorze anos. A vitória esmagadora não se deu tanto pelo aumento de votos dos trabalhistas (de fato, tiveram menos votos que na última eleição), mas pela dramática redução de votos dos conservadores e pela particularidade do sistema eleitoral distrital inglês, onde os deputados disputam em cada distrito. Com esse sistema, mesmo não crescendo em votos, os trabalhistas conseguiram eleger 411 deputados em um Congresso de 650 membros, 210 a mais que no Parlamento anterior, enquanto os conservadores caíram para 121 – a sua pior performance histórica, perdendo 244 cadeiras em relação ao Parlamento anterior.
Embora os trabalhistas devam governar sozinhos, pela maioria, através de seu líder Keir Starmer, vale apontar ainda que os liberais democratas cresceram de 11 para 72 parlamentares, se aproximando bastante dos conservadores, com quem devem disputar a liderança da oposição congressual. Outro ponto importante a ressaltar é que a extrema direita, através do Reform UK, embora tenha elegido apenas cinco deputados (contra um no Parlamento anterior) foi o terceiro partido em número de votos, obtendo 14,3% dos votos totais, contra 12,2% dos liberais democratas, que fizeram a terceira bancada (os trabalhistas tiveram 33,7% dos votos, e os conservadores, 23,7%). Coisas do sistema distrital inglês. Ou seja, se no Parlamento os liberais democratas disputarão a oposição com os conservadores, nas ruas quem crescerá na oposição é a extrema direita, a mesma que liderou a movimentação para a saída do Reino Unido da União Europeia alguns anos atrás.
Finalmente, valem algumas observações sobre o processo eleitoral francês. Na França, a recém-constituída Nova Frente Popular virou as eleições de forma incrível, e conseguiu não apenas ganhar, mas impor uma gigantesca derrota à extrema direita francesa, que saiu da liderança no primeiro turno para um terceiro lugar no segundo e definitivo turno. A Nova Frente Popular, composta fundamentalmente por quatro grandes forças políticas – a França Insubmissa, mais à esquerda e maior força individualmente, os ecologistas, os comunistas e os socialistas, e ainda algumas agrupações menores –, conseguiu eleger 182 deputados, contra 168 da coalizão liderada pelo Juntos (a principal agrupação alavancada pelo presidente Macron) e 143 da extrema direita.
Essa vitória aconteceu não apenas por uma ida maciça às urnas (o voto não é obrigatório, e dois terços dos eleitores foram às urnas), quanto especialmente por um movimento que os franceses chamam de “cinturão sanitário”, um voto pragmático no segundo turno para derrotar a extrema direita, elegendo em cada distrito entre os candidatos de esquerda e centrista, o mais viável no segundo turno, na maioria dos distritos. O sistema francês também é distrital, mas ao contrário do inglês, prevê dois turnos, em que no primeiro concorrem todos os candidatos que se apresentarem, e no segundo apenas os que quiserem e tiverem tido mais do que 12,5% dos votos no primeiro turno.
Esse movimento do “cinturão sanitário” permitiu uma gigantesca e imprevista vitória eleitoral à esquerda, um certo renascimento do “macronismo”, e a raiva pela derrota eleitoral da extrema direita, por um lado, mas dificilmente deve resultar em um governo com alguma estabilidade, uma vez que para governar, teria que haver algum tipo de composição entre a esquerda e o centro. Essa composição é muito dificultada pela composição das coligações que disputaram (o chamado “macronismo” topa coalizão com os ecologistas e socialistas, mas veta a participação em governo da principal força da esquerda, a França Insubmissa, de um lado, e evidentemente setores da esquerda não acham possível a aliança com os setores mais conservadores do “macronismo”).
Evidentemente, alianças com a extrema direita, nesse quadro, são impensáveis. E, de outro lado, existe a questão do programa de governo. A esquerda ganhou as eleições com um programa que propõe um aumento expressivo do salário mínimo e a redução do tempo de aposentadoria, assim como flexibilizações no processo de conformação da União Europeia e a defesa dos interesses da pequena agricultura francesa contra os grandes tratados de comércio internacional, o que bate de frente com o programa levado adiante em todos os seus anos pelo “macronismo” na França.
Assim, o provável é que se siga um período de instabilidade, que pode ser mais agudo, levando à crise política e a novas eleições, ou mais crônico – existindo, mas sendo pragmaticamente administrado em função do temor de novo crescimento da extrema direita. Esse é o momento em que estamos agora, na França. Mas ainda com muito otimismo de se chegar a algum bom termo, mas sem muita fantasia. Afinal, como diziam os antigos, “a cada dia, a sua agonia” – e a possibilidade de uma vitória da extrema direita foi momentaneamente afastada.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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