Em poucos dias, teremos na Argentina as PASO – eleições primárias, sigla de Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias, quando todos os partidos fazem seus processos de escolha de candidatos. As PASO definem que partidos concorrem (os que receberem ao menos 1,5% dos votos válidos nas primárias) e qual a lista de candidatos – ou seja, definem os candidatos, no caso dos cargos majoritários. A partir daí, aceleram-se os debates até o segundo turno das eleições presidenciais, que está marcado para o dia 22 de outubro (caso as eleições não se definam no primeiro turno). Diferente do processo de maioria absoluta (o eleito no primeiro turno tem que ter 50% mais um dos votos válidos), no caso da eleição argentina, ela se decide com 45% de votos no primeiro turno, ou ainda mais de 40%, desde que a diferença seja de 10% ou mais. Ou seja, é necessário levar em conta essas especificidades na análise e nos prognósticos.
Até agora, a ênfase da imprensa brasileira aparentava estar no candidato de extrema direita Javier Milei, um deputado por Buenos Aires, que concorre pelo partido que criou, La Libertad Avanza. Milei apresentava um conjunto de propostas que focava na dolarização da economia e no endurecimento de medidas de segurança, mas sua candidatura perdeu vigor no último período. A candidatura se enfraqueceu por um certo pragmatismo da direita, que tenta focar em suas forças mais tradicionais, e por uma série de denúncias de manipulações e/ou manobras financeiras suspeitas nos processos regionais de escolha de candidatos. Assim, quem focava nesta candidatura perdeu um pouco o eixo da análise.
A extrema esquerda, nessa eleição representada pela FIT-U (sigla em espanhol da Frente de Esquerda e de Trabalhadores – Unidade), tradicionalmente supera a linha de corte das PASO (o fez em todas as últimas eleições recentes nos últimos 20 anos) e também deve concorrer apresentando uma plataforma que deve se focar na crítica ao acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), sustentado pelos dois principais candidatos, e na crise econômica e social argentina dos últimos dez anos, centrando em propostas de mudanças profundas.
Partidos com enfoque regional ou temático podem ainda se viabilizar, dependendo de ultrapassarem a cláusula de barreira (isso se verificará nas PASO) e podem impactar as eleições, já que pelas regras para a vitória, a pulverização eleitoral acaba sendo decisiva, dependendo do lado onde ocorrer.
Finalmente, concorrem os blocos que têm se enfrentado nos últimos processos eleitorais, a direita liberal (que já foi liderada pelo ex-presidente Macri, e hoje apresenta algumas mudanças e disputas) e o peronismo, que vem unido, mas não muito, com todos os seus matizes.
Na direita que protagonizou as últimas disputas eleitorais, o bloco Juntos pela Mudança, existe uma disputa entre duas composições entre o PRO (partido do ex-presidente Macri) e a UCR (União Cívica Radical, um partido tradicional e histórico argentino mais ao centro do processo político), ambas encabeçadas por candidatos do PRO. Uma encabeçada pelo chefe de governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, Horacio Rodriguez Larreta, com um discurso mais ao centro, e outra pela ex-ministra do governo Macri Patrícia Bullrich, que vem fazendo um discurso mais conservador, focado em questões de segurança e buscando avançar em cima da decomposição dos votos no candidato da extrema direita.
Na essência, quanto à economia, ambas as candidaturas defendem um forte ajuste e aprofundamento das políticas do acordo com o FMI firmado inicialmente no governo Macri, como expressão do fracasso da política econômica de então, que não conseguiu segurar a fuga de capitais e terminou com as tradicionais crises de balanço de pagamentos da economia argentina, com disparada do dólar e perda de controle sobre o processo inflacionário. Por conta inclusive da identificação de Macri com o acordo com o FMI e o fracasso de seu governo, o ex-presidente acabou retirando sua pré-candidatura.
No peronismo, as forças tradicionais, embora com muitas tensões, acabaram se compondo em torno do ministro da Economia, Sérgio Massa, inclusive o setor liderado pela ex-presidente Cristina Kirchner. Também apoia Massa o atual presidente, Alberto Fernández, em meio à crise econômica, inflação alta e tensão com o setor peronista da ex-presidente Cristina. Massa, assim, é o candidato oficial do União pela Pátria, de todos os setores do establishment do peronismo.
Concorre com ele internamente um outsider, muito mais novo e sem tradição no peronismo, Juan Grabois, com um discurso muito progressista. A candidatura de Grabois parece ter crescido nas últimas semanas de forma meio surpreendente, já que o discurso do candidato é excessivamente crítico para quem terá que defender o governo na campanha eleitoral, mas muitos avaliam que cumpre a tarefa de não deixar muitos votos da esquerda peronista migrarem para a extrema esquerda nas PASO. A ver, no peronismo tudo pode surpreender – ou não.
Massa terá a dura tarefa de defender um governo que tenta administrar a crise econômica e social, mas tenta jogar a culpa da crise econômica no governo Macri, do qual a herdou, e a da crise social na crise econômica e na pandemia da Covid-19. A ver se emplaca o discurso. De todo modo, o atual governo argentino conta com parceiros importantes na torcida tanto na região (como o Brasil, preocupado com o que uma vitória oposicionista pode representar de crise no processo de integração regional sul-americano e no Mercosul), como a nível global (a pressão sobre o FMI e o aporte de recursos chineses para viabilizar o próprio acordo mostram que os peronistas se movem com “padrinhos” fortes no cenário internacional). Mas a tarefa, no meio da crise, é muito difícil para quem é situação, à frente do governo do país.
O processo e as eleições parecem muito mais importantes para o futuro das parcerias internacionais da Argentina do que para o processo interno, onde os dois principais blocos – Juntos pela Mudança e União pela Pátria – seguem defendendo as políticas de ajuste embutidas no acordo com o FMI, com evidentes nuances: a direita reforçando o discurso do ajuste, o peronismo reforçando os limites sociais do ajuste. Mas o pragmatismo pode operar mudanças, como também a campanha eleitoral. Assim, todo o processo argentino vai ser muito disputado – e interessante.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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